A festa de Nossa Senhora da Glória do Oiteiro*
Hoje no Rio só há duas solenidades religiosas a sustentar a tradição da cidade: a festa da Penha e a festa da Glória.
Nunca fui à festa da Penha. Parece que ela é cara sobretudo aos portugueses.
Mais brasileira, mais tradicional, mais poética, incomparavelmente, é a festa de Nossa Senhora da Glória. O pequeno oiteiro da Glória, com a sua capelinha duas vezes secular, é um dos sítios mais aprazíveis, mais ingenuamente pitorescos da cidade. As velhas casas da encosta cederam lugar a construções modernas. Entretanto a igrejinha tem tanto caráter na sua simplicidade, que ela só e mais uma meia dúzia de palmeiras bastam a guardar a fisionomia tradicional da colina. Embaixo a paisagem se renovou completamente. Lembro-me bem do largo da Glória e da praia da Lapa da minha meninice: um desenho de Debret. Desapareceu o casarão do mercado que servia de caserna e despertou o interesse público quando abrigou por algum tempo as jagunças e os jaguncinhos trazidos de Canudos. O largo estendeu-se até à falda* do oiteiro. O caminho da praia alargou-se em ampla avenida arborizada. O velho edifício onde no império estava instalada a Secretaria dos Negócios Estrangeiros foi substituído pelo Palácio do Arcebispado. Todas essas mudanças vieram realçar ainda mais a graça ingênua da igrejinha. Só uma coisa a prejudicou: a mole* pesada do Hotel Glória. O observador que olha do morro de Santa Teresa não vê mais o perfil da capela recortado no fundo das águas.
Manuel Bandeira, Melhores crônicas. Adaptado.
* Glossário:
“oiteiro”: o mesmo que outeiro, colina.
“falda”: sopé, base.
“mole”: grande massa informe; construção maciça, de grandes proporções.
Na composição do texto, o autor combina elementos descritivos e narrativos, como comprova o emprego reiterado, respectivamente, de