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2023
Não se aplica
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O fragmento a seguir é de um conto de Luci Collin (1964-...).

De dia

Eu e a Dona Doris somos tristes. Ela não tem muito motivo, acho. Ela é muito linda, não faz mal que seja de idade. Não conheci quando era moça e nem vi foto, mas deve ter sido uma mulher daquelas que todo mundo comentava de beleza. O cabelo lisinho é a coisa mais bonita do mundo. O meu é ruim. Os dentes dela são retinho. Um dente meu de trás dói, mas eu não reclamo porque não tenho tempo pra ir no dentista mesmo, porque a Dona Doris faz questã que eu fique direto do lado dela, pra escutar as histórias.

Também faço a comida e compro revista pra ela. De artista. Importada. Compro lá no centro da cidade. Vou de ônibus. Ela finge que lê naquela língua esquisita. E eu finjo que ela sabe. É tudo em inglês, acho, e um dia ela me disse que as palavras lá não têm acento, já pensou? Eu não avancei muito no estudo, mas sei colocar acento em cima, por exemplo em paõ. A Dona Doris fala puxado, no começo era dificultoso entender, mas depois de ouvir tanta história, e ela repete, já peguei o jeito. Tem coisa que eu sei que ela inventa metade. Acho que já está como a minha avó era, meia caduca.

A coisa mais linda além do cabelo que eu acho na Dona Doris é a voz. Canta em estrangeiro e sabe de cabeça uma porção de música. E vai até o fim. Se eu tivesse um violão podia seguir ela, mas eu não tenho nem ideia de como é que faz aquelas coisas com a mão. Canta com sentimento. Se eu cantasse como ela não ficava nunca triste. Não sei bem o que é verdade de tudo que ela diz. Às vezes é esquisito, por exemplo, disse que o nome da mãe dela era Alma e eu não quis discutir, mas eu sei que alma é outra coisa. Não iam dar nome de espírito pra uma pessoa. Nunca retruquei. Talvez seja nome aceitoso em outro país. Uma vez disse que a família dela era de alemão por isso ela tem aquele sobrenome comprido que eu não consigo nem ler. O meu é Dias e eu acho bom porque é facinho de escrever sem letra repetida. Também o lugar que ela nasceu, quando eu perguntei, ela disse O raio. Não sei onde que fica, mas deve de ser no sul. O marido dela tocava um coiso que chama trombone. É de ferro. Me mostrou uma foto numa revista. Não foto do marido, que deixou ela faz tempo. Foto de outro homem tocando aquilo. Achei engraçada esta palavra trombone. Foi lindo como eles se conheceram, ele levou ela no cinema. Era bem mais velho, mas a mãe dela deixou. Depois descobriram que já era casado e a mulher estava até esperando nenê. Coitada da Dona Doris, não começou muito bem a vida sentimental dela. E tão novinha! Tinha só dezesseis.

O pai dela era safado. Ela me contou que ele teve um caso com a própria amiga da mãe dela. Professor de música. Nunca fala muito do pai. Mais da mãe, mesmo. Eu não tive pai. Ela pelo menos teve (...). Eu nunca tive família.

A Dona Doris repete que ela casou quatro vezes, mas nenhum deu certo. E sempre fala que o verdadeiro sonho dela era ter família grande e casa pra cuidar. Não deu. Acho que não soube escolher bem. O primeiro marido, quando ela tinha 17, era um demônio. Aquele homem do trombone que eu já contei. É, acabou casando. Me mostrou uma calçada nos Estados Unidos onde tem desenhado umas estrelas bem grandes pra atriz de cinema com o nome da pessoa escrito ali. Eu nunca fui num cinema. Recortou uma estrela daquelas e colou na cabeceira da cama. Eu nem achei tão bonito. Ela já foi nos Estados Unidos, acho. Quase todas as histórias que ela conta passam lá, mas isso com certeza ela inventa. Pode até ter ido lá de moça, mas deve ter sido uma fortuna. Passagem de ônibus já é caro, imagina se ela foi de avião. É, pode ter sido rica, eu nem nunca tinha pensado nisto. Dinheiro ela tem, decerto não muito, mas dá pra pagar o aluguel daqui e comprar comida folgado. Ela não me paga salário, mas também nem precisava porque deixa eu viver aqui sem estrilar. Se eu pedir, paga dentista. Nunca me negou nada e eu posso abrir a geladeira e pegar o que eu quiser. A hora que eu quiser.

O primeiro marido tinha muita tristeza por dentro, mas ela gostava dele mesmo assim. Judiou dela feio. Até na frente dos outros ele acusava ela de não saber comer direito na mesa. Tipo de machão. Mas ela gostava. Foi músico de sucesso e viajava com o grupo. Às vezes ele não levava ela junto. Ela fumava dois maço por dia naquele tempo. Devia de sentir nervoso. Com essa voz bonita dela, se quisesse fazer carreira de cantora bem que dava. Ia ter sucesso até mais que o tal marido. Chamava ela de vagabunda. Tão triste isso num matrimônio! Tinha ciúme, o ruindade. Mas nas coisas de casal, sabe, nas intimidades, era bom. Acho que compensava, vai entender! Quando pegou barriga do filho ele queria que ela tirasse, mas a mãe ela não deixou. Ele bateu tanto que ela quase perdeu. Depois deixou ela pra sempre e foi com uma amante. O nenê era menino. Ela já tinha dezoito então.

Uma vez por mês a Dona Doris manda eu comprar parafuso. Não que use. Tem um montão na prateleira da lavanderia. No começo eu também não atinei. Depois descobri que ela manda eu numa loja bem longe sempre no dia que vem aqui o moço loirinho. Já vi ele duas vezes. Uma vez vi ele falando no telefone e falava estrangeiro. E ela não quer que eu conheça ele. Deve ter seu motivo. Um dia fui bem rápido na loja e quando cheguei de volta aqui com os parafusos ela falou pra eu voltar e comprar mais doze. Acho que este moço é que paga o aluguel e dá dinheiro vivo pra ela. Mas ela nunca falou uma palavra dele e ele nem participa de nenhuma história das dela. Tem olhão azul igual da Dona Doris. Eu não. Uma vez perguntei porque que ela aguentava tanto marido tralha e ela falou que ficava muito triste sozinha e então preferia ficar com qualquer homem, mesmo que ele batesse, pra nunca sentir solidão. Tinha aquele sonho de ter casa e filhos.

O primeiro marido deu um tiro na cabeça. Mas ela nem vivia mais com ele, ainda bem. E não chorou uma lágrima. Disse que quando era mais nova também tinha gênio ruim. Achei isso difícil de acreditar porque ela é bem boazinha hoje em dia. Mas insistiu que teve gênio de cão quando era moça por isso não parou marido em casa. O segundo que ela teve também era músico e tocava um negócio engraçado que faz uma volta. Ai, como é que chama aquilo? É de ferro também e assopra dentro. É, faz uma curva. Esse segundo também era louco de ciumento dela. Ela pensou que ia ser feliz com ele. Naquela época tinha um corpo bem bonito e os homens reparava direto. Eles viveram um tempo dentro de uma casa puxada por um carro. Isso eu não entendi bem. Um tipo de casa que não era ali sempre num mesmo lugar e eles podiam arrastar com um carro. Nunca vi disto, mas não duvidei. Vai ver que ela viu em revista. Não sei por que que eles não quiseram casa fixa. Era apertado, ela disse. A mãe dela foi morar junto pra cuidar do filho e o segundo marido começou a chifrar ela. A Dona Doris conseguiu um trabalho bem longe. Nem sei bem do quê. E levou a mãe e o filho pra outra cidade. O marido pediu divórcio por carta. Durou só oito meses o casamento. Coitada da Dona Doris. Eu nunca consegui casar.

Até o ano passado era mais divertido porque de tarde a Dona Doris gostava de ver televisão. Televisão de verdade não, só os filmes. Televisão de verdade ela não deixa. Mas rádio sim. Eu escuto muito radio de noite. Na cama. Quando ela já está dormindo. Aqui também não toca o telefone. Ela tem um, mas só usa pra pedir remédio da farmácia e o moço entrega de moto. Nunca ninguém liga. Eu gostava muito das fitas que ela tinha e a gente via uma porção de vezes. Sempre os mesmos filmes, mas não cansava. Preciso contar uma coisa: ela pedia pra eu sentar no sofá do lado dela e ficava um pouco embaralhada a minha vista tão longe da tela. Gosto de ver de pertinho. Eu nunca consegui ler nada do que estava escrito e era muito rápido que passava. Mas eu ria quando ela ria e ficava em silêncio quando ela ficava, como se eu tivesse entendendo tudo. Não queria que ela decepcionasse comigo. Depois mandou subir o grau dos meus óculos e aí melhorou. Mas eu não conseguia nunca ler porque passa muito rápido as palavras. Nem com os óculos bom. Como é que o povo consegue, hein? Toda tarde era os mesmos filmes. Até que o videocassete estragou e depois desapareceu da sala. Quase certeza que ela pediu pro moço, aquele que vem de vez em quando, mandar consertar e ele esqueceu. Ela guardou as fitas na cômoda do quarto. Televisão ela não liga, mas eu nem preocupo. Os filmes eram todos com uma mocinha loira bem linda, de cabelo lisinho e olhão azul. Tinha bem perto de uns trinta filmes, tudo sempre com a mesma moça de atriz. Ela cantava no meio do filme e no fim sempre ficava com o homem mais lindo da fita. Era muito engraçada às vezes. Eu gostava de um que chamava Ardida como Pimenta. Mas tinha uns que eram de coisa séria. Eu não entendia, mas ficava ali todo o tempo. Quando via os filmes a Dona Doris não parecia tão triste. Só uma vez ela chorou bem no meio.

Depois que ficou sem marido ela fumava três carteira por dia. Sofria. 

(...)

A doença não sei qual foi. Um pouco depois é que ela veio morar neste apartamento aqui. Quis fugir de tudo de tanta tristeza. Não quis mais falar com a família, acho. Quando era mocinha sabia dançar, mas teve um acidente de carro e não pode mais. Eu não sei dançar. Eu nunca dancei. Passou quase um ano numa cadeira de rodas. Ah, lembrei que o terceiro marido dela roubou tudo o que ela tinha de dinheiro. Por tudo que tinha trabalhado nos 17 anos que eles passaram casados. Ela dava pra ele cuidar e ele gastava e mentia que estava guardado. Quando ele morreu não tinha nada. Ela teve que trabalhar duro depois que ficou viúva. Um dia ela disse que tinha um neto. Mas só uma vez.

(...)

Hoje a Dona Doris acordou esquisita, puro nervo. Repetindo que não era virgem. Não entendi. Tentei consolar ela, mas ela nem me deu pelota. Depois ela ficou lá na cama cantando uma musiquinha que eu gosto que num pedaço diz Que será, será. Até ficou meio enjoativo porque ela cantou aquela música a manhã inteira. Mas pelo menos depois ela melhorou. Disse que estava cansada de ser a namoradinha da América. A Dona Doris diz cada coisa! Me deu um pouco de pena.

Antes do almoço me chamou porque tinha duas coisa importante pra falar: primeiro é que ela vai se mudar pra uma casa com quintal grande porque quer ter cachorro de novo e segundo é que ela quer que eu passe a chamar ela de Dona Clara.

De noite eu fiquei pensando que ela não explicou direito se vai me levar junto ou se não.

COLLIN, Luci. De dia. In: A árvore todas. São Paulo Iluminuras, 2020 (p. 37-42).

A relação entre a narradora e a Dona Doris pode ser qualificada de:
A
hostilidade.
B
superioridade.
C
letargia.
D
ressentimento.
E
complementaridade.