Questão
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC - MG
2019
Fase Única
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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O médico

… e, de repente, um canto de minha memória que o esquecimento escondera se iluminou, e eu o vi de novo, do jeito como o havia visto pela primeira vez: o quadro. Vejo-me, menino, na sala de espera do consultório médico. Estou doente. Meus olhos assustados passeiam pelos objetos à minha volta, até que o encontram. Pendia, solitário, na parede branca. Levanto-me e me aproximo, para ver melhor. Leio o nome da tela: O médico.

É a sala de uma casa. Cena familiar. 

Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião. Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente. A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo. Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro. Seus olhos estão fechados, mergulhados em um esquecimento febril. Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela? Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum pode tocá-la. Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.

O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz. Do lampião a querosene sai uma outra luz que ilumina a menina. Mas a menina doente sai da luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria, que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.

O artista escolheu de propósito. Se, em vez de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por mais dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste mas não é trágica. É como o acorde final de uma sonata. O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação. [...]

Amei esse quadro a primeira vez que o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão por que, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco. 

ALVES, R. O médico. Campinas, SP: Papirus, 2002. Fragmento adaptado.

Ao final do texto, o desejo de ser médico é associado à 
A
preocupação com o próximo.
B
impotência diante da morte.
C
superação dos fracassos.
D
consciência da solidão.