Questão
Universidade Estadual do Centro-Oeste - Unicentro
2025
Fase Única
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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Os nascimentos das línguas são misteriosos. É difícil precisar em que momento um grupo de pessoas deixa de se comunicar de uma forma para se comunicar de outra. Isso porque a transição de um sistema linguístico para outro raramente é abrupta, já que as línguas nascem da interação, da fusão e da troca. Frequentemente, várias línguas coexistem por longos períodos antes de emergirem como dominantes, embora esse domínio nunca seja permanente. A boa notícia é que os falantes de português terão uma visão privilegiada deste fantástico mundo de nascimentos, mortes e renascimentos. Em movimento sincrônico, quase astral, duas iniciativas abordam as misturas e confluências que resultaram na língua de Camões, mas também de Machado de Assis.

Vindo do lado de lá do Atlântico, acaba de aportar no Brasil o livro do filólogo português Fernando Venâncio. Assim nasce uma língua tem o mérito de refutar as visões puristas que defendem que o português nasceu no século 12, com a formação do reino de Portugal, descendendo diretamente da língua romana. Para o autor, a língua portuguesa teve uma origem muito mais prosaica, cerca de seis séculos antes, derivando do galego, língua falada por camponeses no noroeste da Península Ibérica. A conclusão, aparentemente simples, joga por terra o argumento xenófobo que por séculos inferiorizaram as variações faladas fora do território europeu: a ideia de que nossa língua nasceu com os portugueses. “O português considera a si mesmo como um ser único. Nas suas formas mais extremas, esta convicção chega a supor uma intervenção providencial. Portugal teria, e isso desde sempre, um povo, uma cultura, uma religião e, claro, uma língua própria”, disse o autor à Veja.

Como conceber, então, que um idioma igual ao português existisse antes mesmo de Portugal? “Nesse caso, os sentimentos se misturam”, pondera Venâncio. “Nós, portugueses, concebemos mal que o nosso idioma tenha sido engendrado fora do nosso território. E, efetivamente, toda a história do português acaba por ser a de um gradual distanciamento do galego”. Distância esta que o autor tenta, agora, encurtar trazendo esse passado que por muito tempo foi jogado para baixo do tapete e evidenciando as misturas incômodas e diversas que sempre constituíram a língua.

Ao analisar certas proximidades, porém, Venâncio não deixa de notar evidentes afastamentos. O livro conclui que esta língua está fadada a dividir-se em outros idiomas, como outrora aconteceu com os romanos. “A história do Português mostra que ele sabe se adaptar com facilidade. Ele superou as dores do crescimento e se apresenta de rosto renovado. Isto permite prever que brasileiros, africanos e portugueses continuarão a dispor de um idioma rico e dúctil, sem receio das variedades e mesmo das diferenças”, sintetiza o autor que lembra que a pouca consideração dada por Portugal à língua que vinha se constituindo no Brasil resultou em uma invejável liberdade criativa para os brasileiros que, enquanto povo, tiraram o máximo proveito disso.

Do lado de cá do Atlântico, as línguas se encontram. Se o português de Portugal se formou a partir do galego, foi no Brasil que ele encontrou seu âmago, misturando-se a outras formas de falar e constituir o mundo. Essas intersecções são abordadas na nova mostra temporária aberta no Museu da Língua Portuguesa, seguindo até janeiro de 2025. Chamada de Línguas Africanas que Fazem o Brasil, com curadoria do músico e filósofo baiano Tiganá Santana, a exposição se debruça menos sobre a língua de Camões e mais sobre o tempero de Machado de Assis. As sincronias entre Venâncio e Santana, porém, se evidenciam nos detalhes. Ambos repensam o apagamento das influências linguísticas que por muito tempo foram consideradas inferiores na formação do nosso vocabulário e mostram que todas as línguas só são possíveis a partir das misturas que as constituem. “É preciso lembrar sempre que Portugal não foi exclusivo por aqui. Se hoje temos uma língua brasileira é porque o Brasil constituiu sua própria dinâmica e, nessa dinâmica, os corpos pretos foram grandes difusores de um novo modo de fala”, sintetiza Santana.

“O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”, questionava José de Alencar no fim do século XIX. Dois séculos depois, Tiganá Santana e Fernando Venâncio parecem finalmente concluir que há beleza, mistura e riqueza em cada uma, à sua própria maneira e com seu próprio tempero.

(Adaptado de: MONITCHELE, M. Como nasce uma língua: exposição e livro questionam origens do português. Disponível em:<https://veja.abril.com.br/educacao/como-nasce-uma-lingua-exposicao-e-livro-questionam-origens-do-portugues/>. Acesso em: 2 jul. 2024.)

Sobre os recursos argumentativos empregados no texto, assinale a alternativa correta.
A
Em “várias línguas coexistem por longos períodos antes de emergirem como dominantes, embora esse domínio nunca seja permanente”, o termo “embora” permite inferir que há uma ambiguidade no enunciado.
B
No trecho “A boa notícia é que os falantes de português terão uma visão privilegiada deste fantástico mundo de nascimentos, mortes e renascimentos”, recorre-se à comparação para ampliar a carga argumentativa do enunciado.
C
O fragmento “resultou em uma invejável liberdade criativa para os brasileiros que, enquanto povo, tiraram o máximo proveito disso” apresenta na expressão entre vírgulas “enquanto povo” um tom irônico e crítico.
D
Em “Ao analisar certas proximidades, porém, Venâncio não deixa de notar evidentes afastamentos”, a conjunção “porém” serve para enfatizar a relação existente entre dois termos contrários: “proximidades” e “afastamentos”.
E
No fragmento “Dois séculos depois, Tiganá Santana e Fernando Venâncio parecem finalmente concluir que há beleza, mistura e riqueza em cada uma”, a expressão temporal indica uso de hipérbole.