O pão nosso de cada dia
“Comerás o pão com o suor do teu rosto” − foi a pena de Adão imposta pelo Senhor, por conta do pecado original. E o pão constituiu-se, desde sempre, como alimento básico, resumindo em si mesmo o que é indispensável para a sobrevivência humana. “O pão nosso de cada dia”, “É preciso ganhar o pão”, “Em casa que não tem pão todo mundo grita e ninguém tem razão” são ditos e expressões que registram sua importância essencial. O pão já era conhecido há mais de seis mil anos, na Mesopotâmia, e esteve presente, nas tantas formas e receitas que ganhou, em todas as épocas e culturas.
O processo de fermentação, a princípio ativado pelo levedo de cerveja, foi uma técnica desenvolvida pelos egípcios, que aliás se valiam do pão como forma de pagamento: um dia de trabalho valia três pães e dois cântaros de cerveja − uma proporção que muita gente apreciaria. Mas foi através dos gregos que chegou à Europa: em Roma passou a ser fabricado por padeiros profissionais, e já na Idade Média era distribuído aos soldados como complemento do soldo.
Com a Revolução Industrial, a produção do pão ganhou um forte impulso, seja pelo aumento das terras destinadas ao plantio do trigo, seja pelo desenvolvimento das técnicas de moagem do cereal nos moinhos. E não nos esqueçamos de que a escassez dele foi uma das razões da Revolução Francesa: diante da população faminta, Maria Antonieta teria dito a frase que lhe custou a cabeça (e de muita gente mais): “Se não têm pão, que comam brioches”.
O Brasil só veio a conhecer o pão de trigo no século XIX. Antes, aqui o alimento com uso de farinha era à base de mandioca ou milho. Os responsáveis pelo desenvolvimento da panificação entre nós foram os imigrantes, notadamente os italianos. Com o desabastecimento eventual, motivado pelo crescimento exponencial do preço do trigo na época da Segunda Guerra, outras farinhas são chamadas para o fabrico do pão.
Muitas religiões incluíram-no em sua simbologia e em seus ritos. No Cristianismo ele representa o corpo de Cristo, no sacramento da comunhão, em forma de hóstia; os judeus costumam abençoá-lo antes das refeições; no Islamismo, é considerado uma dádiva de Deus. Entre pagãos, registram-se cerimônias nas quais, com o pão, celebra-se o sucesso de uma colheita.
É verdade também que, em tempos remotos, por conta de sua fermentação química, o pão chegou a ser reprovado pelos conservadores religiosos romanos, juntamente com os judeus: consideravam o fermento uma impureza.
E o que dizer da presença do pão nas representações artísticas? A própria fórmula “Nem só de pão vive o homem” inclui-o para contrapô-lo àquilo que ele não sustenta diretamente: o espírito humano. Na música popular brasileira, os versos da canção “Cio da terra”, tornada célebre por Milton Nascimento, embalam o ouvinte com estas operações: “debulhar o trigo, recolher cada bago do trigo, forjar no trigo o milagre do pão”. No poema “Hotel Toffolo”, ambientado em Ouro Preto, Carlos Drummond de Andrade, diante do aviso de que já não havia jantar, responde ao dono do estabelecimento: “Como se a cidade não nos servisse o seu pão de nuvens”. A importância do pão para a sedentariedade do homem é ressaltada pelo escritor português Alfredo Saramago em seu livro Doçaria conventual do Norte − História e Alquimia da farinha, e o antropólogo brasileiro referiu sua presença entre nós em Casa Grande & Senzala. E mesmo um Guimarães Rosa não deixou de brincar com a palavra, forjando um ditado: “Pão ou pães, questão de opiniães”.
Do armazenamento dos grãos nos silos de grande cubagem às grandes masseiras das padarias, das receitas caseiras às sofisticadas e secretas fórmulas francesas ou italianas, o pão é servido para todos os gostos, acompanha um sem-número de produtos e é, em nossos dias apressados, indispensável em refeições ligeiras ou em lanches rápidos. John Montagu (1718-1792), o conde de Sandwich, nunca imaginou que sua obstinação em comer pão cortado e recheado com alguma iguaria desse origem não apenas ao substantivo comum sanduíche, mas a um hábito alimentar que se expandiu pelo globo.
Farto é também o seu aproveitamento metafórico, cuja origem nem sempre fica clara: veja-se o caso de homem pão-duro, ou da expressão pão-pão, queijo-queijo, ou de passar a pão e água, ou ainda tirar o pão da boca de alguém, formas sugestivas de sua presença para caracterizar personagens e situações as mais diversas. Nem se pode esquecer a expressão latina panis et circenses (pão e circo), como compromisso básico de um governante em satisfazer a fome do alimento e de diversão dos governados. Mas provavelmente o caso mais bonito do emprego do vocábulo panis está na expressão cum panis, de que nasceu o sentido de companheiro: o que divide o pão com alguém. E para não esquecer que até o Demo acabou entrando na história do pão, veja-se o que se diz quando alguém sofreu muito: coitado dele, comeu o pão que o diabo amassou. Nunca deveria faltar o pão em qualquer mesa: para uma boa parte da humanidade, em pleno século XXI, a imagem de um pão não é mais do que sofrida imaginação.
(José Alcino de Carvalho, inédito)
No texto O pão nosso de cada dia, o autor faz referência ao desenvolvimento das técnicas de moagem na produção do pão.
Com base no conhecimento histórico, é correto afirmar que a tecnologia