A partir do texto, julgue o item:
JOANNA BAPTISTA foi uma mulher livre que se vendeu como escrava. No dia 19 de agosto de 1780, ela compareceu a um cartório de Belém, no Pará, e registrou uma escritura de compra e venda de si própria.
“De sua livre e espontânea vontade, sem constrangimento de pessoa alguma”, diz o documento, hoje guardado nos arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, “ela, outorgante, desiste de todo o privilégio da liberdade e foro que pudesse alegar que até agora tinha, e se submete debaixo das leis e penas da escravidão, e desde logo renuncia, para sempre, tudo quanto pudesse haver em direito a seu favor, para ir desde logo para a servidão e cativeiro de Pedro da Costa, que desde já o reconhece por seu senhor.”
Joanna era uma cafuza, filha de uma índia e um escravo negro que tinham passado a vida a serviço de um padre da cidade. Os pais haviam morrido e a moça, de 19 anos, sem condições de sobreviver sozinha, procurava um lugar onde pudesse viver e trabalhar.
O valor do negócio era 80 mil-réis – metade em dinheiro e metade em joias e acessórios de ouro. Segundo a escritura, Joanna já havia recebido o dinheiro, um brinco e um colar de ouro. Faltavam 22 mil-réis, que seriam pagos aos poucos pelo comprador, o catalão Pedro da Costa. Joanna se comprometia a “passar recibo de quitação de si própria” quando o comprador terminasse de pagar a dívida. A escritura descrevia outros dois acordos: caso Joanna tivesse filhos, eles nasceriam em liberdade; se o senhor não cuidasse dela com respeito, ela poderia pedir que fosse vendida para outra pessoa.
Mesmo naquela época a decisão de Joanna Baptista provocou assombro. “É um dos procedimentos mais estranhos e extraordinários de que tenho notícia”, disse o então governador do Pará e Rio Negro, Telo de Meneses, numa carta para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar. Em “um século iluminado, de tanta humanidade, e em que a real grandeza de nossos augustos monarcas tem empenhado tanto a favor da liberdade dos seus povos”, uma história daquelas “só poderia acontecer neste país, onde a corrupção e a libertinagem grassam com maior desenvoltura que em qualquer outro”.
Tanto no século 18 quanto hoje, a grande pergunta que o caso desperta é: por que Joanna Baptista se vendeu como escrava?
No livro Slavery and Social Death, um clássico sobre a história universal da escravidão, o historiador Orlando Patterson conta que episódios de autovenda ocorreram em diversas sociedades escravistas. Ele lista três principais motivos para uma decisão como essa. O primeiro é a pobreza. Na Rússia entre os séculos 17 e 19, na China e no Japão medievais, pessoas se venderam como escravas para não morrer de fome. Outra razão é a insegurança política. “Estrangeiros que se viram apartados de seus parentes em sociedades tribais frequentemente procuraram se vender à escravidão como a única forma de sobrevivência”, conta o historiador. No Congo durante o século 19 ou na Alemanha medieval, virar escravo foi um modo de não ser morto pelo inimigo. O terceiro motivo era escapar do serviço militar ou da condenação pelo não pagamento de impostos. Segundo Patterson, isso aconteceu na China e, principalmente, na Coreia da dinastia Yi, que vigorou de 1392 a 1910.
(NARLOCH, Leandro. Achados e perdidos da história: escravos [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.)
Percebe-se, da leitura do texto, que alguns cidadãos, em diversas épocas, preferem a escravidão a outras situações, por isso vendiam-se como escravos a outros.