O que a palavra diz sem dizer
Mais do que forma e sentido, palavras têm uma aura, um cheiro, um jeito. Podem ser legais ou malas, bonitas ou feias, difíceis ou oferecidas, sisudas ou frívolas, francas ou enigmáticas, de boa índole ou perversas. Podem enganar, fingindo uma facilidade que vira pedreira ali na esquina. Mas também pode ser que, ao contrário, escondam as delícias mais inebriantes sob uma casca dura e espinhenta.
Dito assim, as palavras soam como as pessoas, o que não está longe da verdade. Como nas relações humanas, seu mundo é atravessado por uma rede de simpatias e antipatias que precede o sentido e, em certa medida, sobrevive a ele. Isso ocorre porque, ao nos relacionarmos com as palavras, usamos reservas − cognitivas, emocionais e intuitivas − que vão muito além da razão. Que envolvem, por assim dizer, o corpo todo.
Como poderia ser diferente? Na história do desenvolvimento de cada um de nós, o aprendizado da linguagem coincidiu de forma perfeita com o aprendizado de simplesmente... ser.
O que nos diz nossa intuição sobre a palavra "pulcritude", por exemplo? Boa coisa não é. Além de pernóstica, de sentido inacessível aos mortais comuns sem a ajuda de um bom dicionário, a palavra exala um mau cheiro − vamos ser francos − entre o poeirento e o azedo. No entanto, a feiosa pulcritude, com seu bafo rançoso e sua verruga do tamanho de uma jabuticaba no nariz, quer dizer nada menos que beleza, formosura. Pode? No mundo das palavras, pode.
O potencial literário da aura das palavras é óbvio: em grande parte, escrever é tirar proveito desses ecos e fantasmas, sem esquecer, claro, os sentidos literais.
(Adaptado de: RODRIGUES, Sérgio. São Paulo: Folha de S. Paulo. 02/10/2020)
Ao empregar as expressões bafo rançoso e verruga do tamanho de uma jabuticaba, o autor está se valendo de