A questão focaliza um trecho de uma crônica do escritor Graciliano Ramos (1892-1953).
Para chegar ao soberbo resultado de transformar a banha em fibra, aí vem o futebol.
Mas por que o futebol?
Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?
Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.
No caso afirmativo, seja muito bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece- -me que o futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.
Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país é necessário, não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão.
O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes¹ jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído.
Os campeões brasileiros não teriam feito a figura triste que fizeram em Antuérpia se a bola figurasse nos programas das Olimpíadas e estivessem a disputá-la quatro sujeitos de pulso. Apenas um representante nosso conseguiu ali distinguir- se, no tiro de revólver, o que é pouco lisonjeiro para a vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria muito mais fácil o indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbiguda, emboscado atrás de um pau.
Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras?
O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos.
As grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente, é sertão.
As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego. Nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam liamba².
¹ 𝗺𝗮𝗺𝗯𝗲𝗺𝗯𝗲: 𝗺𝗲𝗱𝗶𝗼𝗰𝗿𝗲, 𝗿𝗲𝗹𝗲𝘀, 𝗱𝗲 𝗯𝗮𝗶𝘅𝗮 𝗰𝗼𝗻𝗱𝗶𝗰𝗮𝗼.
² 𝗹𝗶𝗮𝗺𝗯𝗮: 𝗰𝗮𝗻𝗵𝗮𝗺𝗼, 𝗺𝗮𝗰𝗼𝗻𝗵𝗮.
(𝙇𝙞𝙣𝙝𝙖𝙨 𝙩𝙤𝙧𝙩𝙖𝙨, 1971.)
Na oração “O do futebol não preenche coisa nenhuma” (7º parágrafo) é omitida, por elipse, uma palavra empregada anteriormente: