A seguir, leia o fragmento de "A máquina do mundo", poema de Claro enigma, de Carlos Drummond de Andrade.
(...)
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada¹
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos²,
convidando-os a todos, em coorte³,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo (...).
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 121-122.)
Vocabulário:
¹ debuxada: rascunhada.
² périplos: longas viagens.
³ coorte: tropa.
Em 1951, a publicação de Claro enigma surpreendeu os leitores de Carlos Drummond de Andrade com uma série de novidades em relação à poética desenvolvida pelo autor nas décadas anteriores. Dentre essas novidades, do ponto de vista formal, o fragmento extraído de “A máquina do mundo” manifesta a