Controverso, realista e catártico. Assim podemos descrever um pouco do que é o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Seu subtítulo, “diário de uma favelada”, ilustra de forma crua o contexto e gênero da obra, traçando o caminho para o que será abordado.
A obra se passa nos anos 50 e retrata um pouco da realidade brasileira, e por que não mundial, da época. Migração do campo para as cidades, reconstrução de grandes centros pós-guerra e a ascensão da televisão como programa de lazer das famílias.
No livro, Carolina retrata seu cotidiano, com histórias que abordam a política, contexto social, urbanização, fome e miséria, infância de seus filhos e convivência com vizinhos e a favela do Canindé, local em que ela morava na época.
Para você entender melhor a obra em questão, preparamos um resumo com tudo o que você precisa saber: contexto histórico, personagens, biografia da autora, linguagem, gênero textual e questões fundamentais do livro. Acompanhe abaixo.
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Quem foi Carolina Maria de Jesus?
A autora, Carolina Maria de Jesus, nasceu na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, em 14 de março de 1914, e mudou-se para São Paulo em 1937, após a morte de sua mãe e estudou somente até a segunda série do que hoje chamamos de Ensino Fundamental 1, na época chamado de primeiro grau.
A exemplo da mãe, trabalhou como empregada doméstica durante vários anos, e, depois de algum tempo, em 1947, grávida e desempregada, mudou-se para a favela do Canindé, que não existe mais, substituída pela Marginal Tietê.
Seu primeiro livro, “Quarto de despejo: o diário de uma favelada”, foi publicado em 1960 e garantiu sucesso imediato para Carolina Maria, sendo traduzido para 14 línguas e vendendo, no Brasil, mais de um milhão de cópias do ano de publicação até o momento.
O sucesso da obra foi meteórico: a tiragem de 10 mil cópias foi vendida em menos de uma semana. Esse sucesso rendeu, para a autora, dinheiro suficiente para que saísse da favela, contudo, a autora e sua família não foram capazes de manter-se fora da favela para o resto da vida.
Contexto histórico de Quarto de Despejo
Para analisar o contexto histórico, é necessário abordar três olhares: o mundial, o nacional e o municipal, que na obra é a cidade de São Paulo. Veja como eles são vistos:
Década de 50 no mundo
Pós-guerra, a década é um momento de reconstrução física, cultural e política de cidades e países. Conceitos antigos são revistos para evitar novas guerras e a guerra fria começa a se fortalecer.
Estados Unidos e União Soviética disputavam a hegemonia mundial e iniciava-se a “era de ouro” da televisão no mundo, enquanto no Brasil o declínio do rádio ainda é pequeno, com as radionovelas e as “cantoras do rádio” acumulando multidões de fãs.
Década de 50 no Brasil
No Brasil, essa década é entendida como a década da modernidade, tanto nas artes quanto na intelectualidade. No ramo político, destaca-se a eleição de dois presidentes por voto direto: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
É um momento de tranquilidade política, pois temos quase 10 anos sem golpes políticos, com modernização das cidades e aumento da migração interna, do campo para a cidade, com um aumento de cerca de 25% da população das cidades grandes. Tal movimentação exige uma maior preocupação com as cidades, com a melhoria das condições sanitárias e o investimento na industrialização dos pólos urbanos.
Década de 50 na cidade de São Paulo
As décadas de 50 e 60 foram marcadas pela proliferação, por assim dizer, das favelas, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. O movimento tem origem no aumento das migrações internas. Tais migrações têm, como destino preferido, em um primeiro momento, as duas maiores cidades do País: São Paulo e Rio de Janeiro.
Membro do Partido Trabalhista Nacional (PTN), Jânio foi eleito em 1954, governando o estado até 1959. Antes de ser governador do Estado, foi prefeito da cidade no período imediatamente anterior à escrita de Carolina Maria, iniciada em 1955. O político teve, na época, grande popularidade em São Paulo, fato que lhe garantiu, anos depois, a eleição para presidente.
Linha do tempo da obra
O diário tem seus primeiros escritos no dia 15 de julho de 1955 e a última no dia 1° de janeiro de 1960. É importante ressaltar que existem diversas lacunas temporais no meio da obra, por motivos variados, alguns ditos pela própria autora na obra.
Movimento em que o livro se encaixa
Quarto de despejo é uma obra vista como neorrealista, no panorama da literatura brasileira contemporânea. O movimento busca apresentar realidades sociais distintas das apresentadas anteriormente, algo que é notório na obra, marcada por focar na parte pobre da cidade, além de apresentar, em forma de denúncia, a condição vergonhosa de pessoas marginalizadas pela sociedade.
Personagens de Quarto de Despejo
- Carolina Maria de Jesus: protagonista e narradora da própria história. Mãe solteira por opção, favelada e trabalha como catadora de lixo e metal. Gosta de ler e escrever e acredita que sua escrita seria a chave para sair do lugar onde vive. Aliás, esse parece ser o que dá sentido ao texto: a sobrevivência diária e a tentativa de transcender aquele lugar;
- Vera Eunice: filha de Carolina e parece ser também a preferida da mãe. Chama a atenção das pessoas que a veem como uma menina encantadora. Quando sai a reportagem sobre a favelada que é escritora, o pai aparece para se certificar que a catadora de papel não vai revelar seu nome;
- José Carlos e João José: os outros dois filhos da protagonista. Ela fala da sexualização precoce dos filhos e dos problemas que ela teve com o João. Ela foi intimada a responder pelo garoto e ele só tinha nove anos. Teria tentado violentar uma menina de dois anos. Ela começa a vigiá-lo.
- Sr. Manoel: homem que se interessa por Carolina. Quer casar com a protagonista. Ela o considera um homem bonito e educado. Deita-se com ele, às vezes;
- Raimundo, um cigano: aparece na favela e é visto como um malandro sedutor. Vive com uma menina que diz que é sua irmã. Promete que se Carolina o aceitar, ele a tirará da favela. Ela realmente fica interessada nele, mas desconfia de suas mentiras e some do mesmo jeito que apareceu;
- Tibúrcio: vendedor de barracões, explorador da gente que vive na favela;
- Orlando: explorador da torneira de onde os moradores da favela pegam água.
Há ainda, aqueles que não são, ao menos, nomeadas, somente descritas, como acontece com os policiais da guarda municipal que aparecem, vizinhos da favela, políticos, entre outros personagens bastante periféricos também.
Como o gênero de diário literário é visto em Quarto de despejo
O gênero diário é marcado pela pessoalidade, ou seja, pela subjetividade. É marcado pela expressividade do autor com sua própria vida, visto que o autor se confunde com o narrador e o personagem principal (caracterizando-se narrador-personagem). Como são retirados relatos do seu dia a dia, é visto como desabafo da realidade, com poucas passagens fictícias. Veja o exemplo abaixo:
19 de maio. (...) Deitei o João e a Vera e fui procurar o José Carlos. Telefonei para a Central. Nem sempre o telefone resolve as coisas. Tomei o bonde e fui. Eu não sentia frio. Parece que o meu sangue estava a 40 graus. Fui falar com a Polícia Feminina que me deu a notícia do João Carlos que estava lá na rua Asdrúbal Nascimento. Que alívio! Só quem é mãe é que pode avaliar. (pp. 32-33)
No trecho em questão, percebe-se a subjetividade, visto que a autora fala de seus sentimentos a partir da possibilidade de ter perdido um dos filhos. Note que há juízo de valor ao fechar o trecho, demonstrando que as mães têm outras relações que não são facilmente reconhecidas por todas as pessoas.
Percebe-se, ainda, uma preferência pelo uso da primeira pessoa, bem como pelos verbos marcados no pretérito, principalmente o imperfeito. Assim, o diário apresenta, como características:
- Marcação temporal do dia em que ocorreu o fato;
- Diálogo entre o escritor e o diário; mesmo quando não há essa marca, o texto deixa entrever um pseudo diálogo com um interlocutor não identificado (não obrigatório);
- Uso do vocativo (não obrigatório);
- Uso da primeira pessoa;
- Linguagem informal;
- Escrita confessional;
- Técnicas próximas às da crônica, relata-se um fato banal e o autor registra suas impressões e reflexões;
- Mistura de tempos no presente e no passado; na narrativa tradicional o tempo verbal usado é o passado, mas nas pequenas narrativas cotidianas utiliza-se o presente para dar mais dramaticidade, no diário é possível mesclar;
- Fragmentação, os eventos anotados não precisam ter coerência entre si.
A arte deve ser representação do real na forma de composição com sentido. O que é caótico e sem sentido deve no texto literário ganhar uma unidade e significação. Nesse sentido, o diário seria um gênero antiliterário.
No caso de Quarto de Despejo, é notável o fato de que o texto transcende o registro particular e consegue envolver o leitor, por trazer, mesmo de forma tênue, uma trama que amarra os fragmentos.
A procura por alimento e pela sobrevivência, mas, sobretudo, a procura por reconhecimento
na qual o próprio diário é parte integrante dessa trajetória são os elementos que dão unidade e tornam interessante cada fragmento do cotidiano.
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Crítica e análise de Quarto de despejo
É necessário lembrar que as características de uma estética não são exaustivas ou englobam todos os autores daquele período. Carolina Maria de Jesus mostra vontade de fazer diferença no mundo e isso perpassa pela construção de sua obra.
Isso chama a atenção de Audálio, jornalista que a encontra e edita a obra, quando ele se impressiona com a ameaça feita por Carolina para pessoas que vandalizavam um parque de diversão: “vou colocar o nome de vocês no meu livro”.
Carolina Maria pode ser entendida como uma representante da exclusão brasileira. Mulher, negra, semianalfabeta e pobre, consegue desenvolver uma obra de denúncia da forma que poucas pessoas poderiam imaginar, inclusive o próprio Audálio. Escrever uma obra, nesses casos, é a coisa menos esperada pela sociedade, visto que havia muitas outras formas de buscar dar ao mundo o conhecimento de sua realidade: a música, a manifestação.
Podemos afirmar ainda mais facilmente que o livro é realmente a descrição diária da vida de uma favelada, como o nome propõe. É uma obra social, que traz a realidade a todos que a querem ou não querem enxergá-la.
Nossa sociedade, que tantas vezes se faz de cega para poder analisar a condição do mais
pobre, recebe como “um soco no estômago” aquilo que Carolina Maria quer dizer sobre sua vida, sua sobrevivência. É o mesmo olhar que Vidas Secas, de Graciliano Ramos, apresenta sobre o sertão nordestino. Agora em meio à selva de pedra que é a cidade grande.
Aqui, vale a análise do nome da obra, o qual contém uma chave essencial para seu entendimento. Carolina Maria afirma, em várias partes do texto, que falar sobre a favela é falar sobre um “quarto de despejo” da “sala de estar”, que a autora entende como o centro da cidade e os bairros habitados pelo que podemos entender como classes privilegiadas. É na sala de estar que trabalham aqueles que moram no quarto de despejo: a periferia.
O nome é retirado de um trecho da obra, apresentado a seguir, em que Carolina Maria diz que a favela, seu lugar de vida, é o quarto de despejo da cidade. É a nova senzala em que os grilhões se transformam na pobreza e na fome, com contínua exploração daquele que permanece escravo, ainda que, supostamente, livre.
As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (p. 33).
Favela como “quarto de despejo”
Para a autora, tudo aquilo que não apresenta valor precisa ser dispensado, jogado no quarto de despejo. Ao falar sobre isso, é posta imediatamente a desigualdade social e sobre como é necessário retirarmos do meio social os problemas para que, tendo “se livrado” do problema, possamos seguir o caminho.
Nesse caso, todos aqueles que estão na favela, na periferia, são excluídos do convívio social com o outro, servindo apenas como mão de obra barata e fácil de manipular. É essa a visão que Carolina apresenta. O “quarto de despejo” serve aos desejos da “sala de estar”. É interessante notar que, muitas vezes durante o texto, apresenta a ideia de que o povo que divide a favela com ela o faz por ser merecedor da posição social que ocupa.
Reações à obra
Uma das discussões levantadas na época do lançamento do livro, na década de 60, foi a literalidade da obra de Carolina Maria de Jesus. Para muitos críticos, a obra produzida pela autora não deveria ser entendida como literatura, porque apresentava uma série de incorreções contra a norma culta.
Tal discussão fala muito sobre como se constrói a cultura em nosso País. De forma geral, há uma valorização da cultura oficializada e legitimada pelos mais ricos, que se sentem inegavelmente ameaçados quando uma pessoa excluída desse círculo tão importante ousa fazer arte e, mais que isso, arte de grande peso, como a feita nessa obra.
Notem que essa discussão sempre aparece quando apresentamos a obra em sala ou quando temos a indicação, como agora, como leitura obrigatória de um vestibular. É possível dizer que o debate levantado pela publicação de Quarto de Despejo mostra a necessidade que temos de apresentar uma “resistência” ao modo elitista de olhar para a cultura e para sua produção.
Tal discussão serve para mostrar que a cultura precisa descer o morro e adentrar os locais acadêmicos, mostrando a força e a capacidade daquele que vive à margem, guardado no “quarto de despejo”.
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