Faleceu hoje (02) a jornalista Glória Maria, que foi a primeira repórter negra da história da televisão brasileira. Sua primeira reportagem foi em 1971, e a primeira aparição em vídeo — anteriormente repórteres não iam para a frente das câmeras — foi em 1974, às vésperas da Copa do Mundo daquele ano.
Ao longo de todos esses anos, sua carreira foi marcada pelo jeito único e inovador de contar histórias, agregando pioneirismo e representatividade negra na televisão. Acompanhe, abaixo, alguns feitos e principais coberturas da vida e carreira de Glória Maria.
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Primeira brasileira a usar a Lei Afonso Arinos (1970)
A Lei Afonso Arinos passou a punir o ato de racismo como crime e não mais como uma contravenção. E Glória Maria foi a primeira a acionar a lei, criada em 1951 “Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”.
Glória também se posicionou pela representatividade negra em espaços de mídia e poder em diversas oportunidades, relembrando tempos em que era “presença quase solitária no telejornalismo” e que recebia cartas com agressões racistas, principalmente no período em que apresentava o Fantástico.
Desabamento do Elevado Paulo de Frontin (1971)
A primeira aparição de Glória Maria na televisão foi em 1971, no trágico desabamento do Elevado Paulo de Frontin, que estava sendo construído, na cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião, 48 pessoas morreram e 20 carros, um ônibus e um caminhão foram esmagados.
Anos depois, em depoimento, Glória Maria falou sobre a situação: “O telefone tocou, e alguém avisou que o elevado caíra. Pensei que fosse brincadeira. Mas era preciso apurar.” As causas do acidente nunca foram conclusivas e não houve condenações pelo fato. Vale ressaltar que a repórter trabalhava na Globo desde 1970.
Assassinato de Ângela Diniz (1976)
A socialite Ângela Diniz foi assassinada a tiros por seu marido, o empresário Doca Street, em 30 de dezembro de 1976. Sua condenação por dois anos de cadeia, com direito de cumprir a pena em liberdade, por conta da tese da defesa de que ele teria “matado por amor”, causou revolta em diversos setores da sociedade, principalmente no movimento feminista da época. O slogan “quem ama não mata” foi disseminado pelo país e se tornou, mais tarde, o título de uma minissérie da Globo.
Todo o desdobramento do caso foi noticiado por Glória Maria, inclusive uma edição especial do Globo Repórter sobre o assassinato e entrevista da repórter com o empresário na saída do tribunal.
Primeira repórter a aparecer ao vivo em cores no Jornal Nacional (1977)
A primeira matéria em cores do Jornal Nacional contou sobre o movimento de saída de carros do Rio de Janeiro em um final de semana. A reportagem foi feita com ela e o cinegrafista de joelhos, por conta de uma lâmpada que queimou poucos instantes antes da entrada ao vivo.
No momento, a única iluminação possível era a dos faróis do carro da emissora, que não iluminavam o suficiente na altura de ambos em pé. “Quando a lâmpada queimou, faltava um minuto para a entrada ao vivo. O jeito foi acender a luz da Veraneio”, contou Glória ao projeto “Memória Globo”.
Posse do presidente estadunidense Jimmy Carter (1977)
No mesmo ano, Glória Maria foi enviada para os Estados Unidos, na cobertura da cerimônia de posse do então presidente Jimmy Carter. O 39º presidente do País foi conhecido pelo alinhamento a pautas de luta por direitos humanos e defesa da democracia. Em 2002, Carter recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Cobertura da Guerra das Malvinas (1982)
Glória Maria se tornou a primeira mulher brasileira a cobrir uma guerra ao desembarcar nas Ilhas Malvinas, em 1982, e cobrir a guerra entre Argentina e Reino Unido. Dentre seus atos na cobertura, ela foi a responsável por noticiar o cessar-fogo da guerra das Malvinas.
“Foi uma experiência única, que eu não repito, mas que eu adorei ter tido. Mudou minha visão da vida, do mundo, porque na guerra as pessoas estão em uma disputa de poder insano e perdem a capacidade de raciocinar”, disse ela no programa Encontro.
Cobertura do primeiro Rock in Rio (1985)
A cobertura do Rock in Rio de 1985 é histórica, não só pelo evento — que estava na sua edição de estreia —, mas também pelas entrevistas com grandes astros do mundo do rock. Vale ressaltar que muitos nunca tinham vindo ao Brasil, já que o país não era destino comum de turnês mundiais como acontece atualmente.
Dentre os entrevistados, Glória Maria teve a oportunidade de conversar com Freddie Mercury, vocalista do Queen, e Mick Jagger, do Rolling Stones, com quem flertou ao longo da entrevista.
Cobertura da invasão da embaixada japonesa no Peru (1996)
A invasão da embaixada japonesa foi coordenada pelo grupo considerado terrorista peruano “Movimento Revolucionário Tupac Amaru” (MRTA), em 1996. Na ocasião, houve a tomada do local, que estava recebendo uma festa, em que 55 diplomatas — inclusive o do Brasil — e outras personalidades, como membros da suprema corte do país e empresários locais.
A exigência do grupo era a libertação de mais de 440 membros do grupo, que foram presos e condenados à prisão perpétua. A invasão durou 126 dias e terminou com o uso da força, em que 200 homens do exército retomaram o local após confronto armado e morte de 14 guerrilheiros, um refém e dois militares. Ao final, 72 reféns foram libertados na ação, e mais de 400 pessoas foram mantidas sob cárcere na embaixada.
Primeira transmissão brasileira em HD (2007)
Glória Maria também esteve na primeira transmissão em HD (alta qualidade) da televisão do Brasil. A matéria em questão era sobre a festa do pequi, em uma aldeia Kamayurá, no Alto Xingu. O contraste de cores da natureza do lugar, das pessoas e suas vestes e de toda a festa em si, ilustrou muito bem a tecnologia que estava sendo iniciada naquele momento.
Participou de ritual rastafari na Jamaica (2016)
Uma das cenas mais marcantes da repórter, principalmente entre os jovens, é de uma reportagem em que Glória foi à Jamaica e participou de um ritual da cultura religiosa rastafari, que consiste, dentre alguns atos, em fumar um cachimbo com maconha.
Trechos da reportagem viraram memes e estão espalhados pela internet. Mas se engana quem pensa que isso abalou Glória, pelo contrário. “Foram três meses de negociação para entrar lá. Um dos regulamentos era: na entrada, fazer uma oração. A gente assinou um monte de papel. Na saída, tinha que fazer outra oração. Só que a gente não leu tudo, e estava lá: ‘Tem que fumar a ganja sagrada’. Ganja sagrada, vamos fumar. Só que eu não sabia o que era a ganja sagrada”, disse ela em entrevista para o programa Roda Viva.
Coberturas esportivas: Copa do Mundo e Olimpíadas
Ainda que tenha participado de diversas coberturas de eventos esportivos, Glória Maria foi marcante nos Jogos Olímpicos de 1984, em Los Angeles, a primeira Olimpíada que ela cobriu in loco.
Dentre seus feitos na edição, Glória conseguiu entrevistar Carl Lewis, que foi o campeão mundial dos 100m rasos. Décadas depois, ela também entrevistou o já multicampeão Usain Bolt no Rio, cidade em que ele se tornou tricampeão olímpico da mesma modalidade de Lewis, e também na Jamaica, seu país natal.
Episódios de racismo com João Figueiredo
“‘Tira aquela neguinha da Globo daqui’, dizia ele. Eu passei todo o governo Figueiredo ouvindo isso”, afirmou Glória sobre o último presidente ditatorial do país. Mesmo com o racismo recorrente, ela ia às coletivas — chegou a ser expulsa de uma delas — e tentava fazer o trabalho jornalístico ao qual ela foi incumbida. O governo João Figueiredo foi entre 1979 a 1985.
Reportagens inusitadas
Ao longo de sua carreira, Glória Maria se aventurou em diversas reportagens. Ela foi a primeira jornalista brasileira a vivenciar a gravidade zero, em uma nave da Nasa; Deu comida a um panda, ainda que separada por uma janela de vidro, na China; Foi de um balão a outro no meio do céu, em uma tábua de ferro; Saltou de bungee jumping em um edifício no território de Macau, na Ásia; viajou por toda transiberiana com o escritor Paulo Coelho e vivenciou a aurora boreal na Noruega.
Entrevista com Michael Jackson, Elton John e Madonna
Além de Jagger e Mercury, Glória Maria entrevistou também Michael Jackson, em 1996, depois de muita insistência, e Elton John, em 2001, na casa do cantor inglês. Elton, inclusive, falou abertamente sobre sua carreira e relação e problemas com drogas.
A entrevista com Madonna foi cercada de nervosismo e apreensão, já que, anos antes, a rainha do pop tinha sido antipática com Marília Gabriela, inclusive criticando seu inglês. Mas correu tudo bem: “Ela foi uma simpatia, de uma gentileza”, contou Glória.
Possuía 15 passaportes e visitou 163 países
Ao todo, Glória Maria preencheu 15 passaportes, tendo viajado por 163 países, contando visitas para fazer trabalhos e reportagens ou mesmo para viagens pessoais. Em entrevista ao GShow, ela escolheu três países para recomendar a quem gosta de viajar: Irã, Índia e, claro, Brasil.