Acessibilidade na universidade: como pessoas com deficiência são incluídas nesse espaço
Colagem: Lucas Zanetti

Acessibilidade na universidade: como pessoas com deficiência são incluídas nesse espaço

No Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, o Estratégia abordou a acessibilidade na universidade, com relatos sobre a inclusão nesse espaço e alguns projetos que apoiam os estudantes.

Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem mais de 17 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência. A porcentagem, próxima a 8,5% da população nacional, não é refletida em inúmeros espaços sociais. 

Quando falamos sobre acessibilidade na universidade e na educação como um todo, é necessário pontuar que 67% das pessoas com deficiência não têm educação formal ou têm apenas o ensino fundamental incompleto. Para efeito comparativo, esse percentual é de 30% em pessoas sem deficiência.

A Lei de Cotas passou a abranger pessoas com deficiência somente em 2016, 11 anos depois da criação do programa Incluir (2005), que tinha como meta desenvolver políticas institucionais nos Institutos Federais de Ensino Superior (IFES).

De lá pra cá, houve um aumento no ingresso de pessoas com deficiência na universidade, mas as políticas de permanência ainda são uma barreira. Para falar um pouco sobre o assunto, o Estratégia entrevistou algumas personagens que vão contar suas experiências e as atuações de diferentes projetos universitários que envolvem o tema. Confira.

Inclusão de pessoas com deficiência na universidade

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Lei de cotas para pessoas com deficiência em universidades federais já está em vigor — Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000, traz uma série de normas voltadas para a promoção da acessibilidade a pessoas com deficiência. Dentre as adequações, estão barreiras arquitetônicas urbanísticas, na edificação, nos transportes e nas comunicações.

Ana Raquel Périco Mangili foi aluna de jornalismo na Unesp de Bauru e tem distonia generalizada — distúrbio do movimento da mesma categoria do Parkinson — e surdez bilateral profunda. 

Autora do blog Dyskinesis, também foi Primeira Secretária do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (COMUDE) de Bauru/SP no biênio 2017-2019. Ela fala sobre as adaptações que precisou realizar para estudar na universidade:

“No quesito de acessibilidade, para eu poder frequentar a universidade, precisei de várias adaptações, como mesa e cadeira maiores, um notebook para escrever com autonomia, uma monitora para me auxiliar durante as atividades das aulas e na hora do intervalo, o uso do Sistema FM dos meus aparelhos auditivos pelos professores e também a legendagem dos conteúdos audiovisuais que eram passados em sala”.

Ana Raquel conta que nem todos os recursos foram disponibilizados desde o começo, como a legendagem de conteúdos audiovisuais e monitoria. “No começo, era minha mãe quem me acompanhava na universidade e houve um período de adaptação, tanto minha quanto da Unesp, em relação ao serviço de monitoria, por não haver precedentes na necessidade desse recurso dentro da própria Unesp”.

Barreiras invisíveis dificultam as mudanças

Ana Paula Camilo Ciantelli estudou o tema em seu mestrado no programa de psicologia do desenvolvimento e aprendizagem da Unesp de Bauru, cuja pesquisa foi finalizada em 2015. Ela comenta sobre dificuldades notadas e sinalizadas pelos núcleos de acessibilidade das Instituições Federais de Ensino Superior, as IFES.

“As chamadas ‘barreiras invisíveis’ (leis, decretos, portarias, normas, regulamentos internos, políticas institucionais, afirmativas, etc.) dificultam as mudanças em prol do acesso e permanência do estudante com deficiência no Ensino Superior. Os núcleos de acessibilidade, apesar das tentativas, parecem não ter muita voz para interferir em ações desse nível”.

“Em seguida, encontram-se dificuldades para a promoção de ações de acessibilidade atitudinal, arquitetônica e metodológicas e/ou pedagógicas, havendo menores dificuldades para a promoção de ações de acessibilidade comunicacional e instrumental”, comenta Ana Paula sobre os recortes encontrados em sua pesquisa de mestrado.

Ingressa na Unesp em 2013, Ana Raquel comenta sobre como a universidade se desenvolveu no que tange à acessibilidade até sua saída, em 2019, quando se pós-graduou em Linguagem, Cultura e Mídia. 

“Em 2013, a universidade até então possuía poucas adaptações para estudantes com deficiência. Foi com o passar do tempo e com as demandas que surgiram de mim e de outros alunos que ela foi se tornando mais inclusiva e acolhedora”. 

“Além dos apoios fornecidos para eu poder acompanhar as aulas, a Unesp foi pioneira no país ao proporcionar custeamento de monitoria durante meu intercâmbio de um mês na Universidad de Salamanca/Espanha, em 2015. Acredito que o exemplo da Unesp tenha sido exceção, pois a sociedade como um todo avança bem devagar quando se trata de acessibilidade, infelizmente”, afirma Ana Raquel. 

Iniciativas desenvolvidas nas universidades

Como afirmou Ana Paula, existem núcleos de acessibilidade em IFES. E, assim como nessas instituições, existem outras iniciativas que abordam o assunto nas universidades brasileiras.

Projetos como o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Laboratório de Acessibilidade da Unicamp (LAB) e o Centro de Promoção para a Inclusão Digital Escolar e Social (CPIDES), da Unesp de Presidente Prudente são alguns exemplos.

Elisa Tomoe Moriya Schlünzen atualmente é aposentada pela Unesp e atua como colaboradora no CPIDES, da qual fez parte. Ela tem 33 anos de contribuição na área, junto com os membros do grupo de pesquisa Ambientes Potencializadores para Inclusão (API).

Ela fala sobre as vertentes em que o projeto atua, que são o desenvolvimento de pesquisas e o atendimento à comunidade por meio dos projetos de extensão.

“O Centro propicia um espaço para se discutir, fomentar e refletir sobre Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva por meio da iniciação científica, grupo de pesquisa e formação inicial e continuada dentro do contexto de cada espaço de desenvolvimento”.

“Já para os estudantes e as famílias atendidas, o CPIDES é um ponto de apoio. Mais do que a oferta de atendimento de caráter pedagógico e de pesquisa, tudo é pensado em como atender, auxiliar e colaborar visando sempre as potencialidades dos estudantes e suporte para as famílias”, completa a professora.

Atuação do CPIDES em números

Segundo Elisa, “o CPIDES já prestou atendimento direto a 761 Estudantes Público Alvo da Educação Especial (EPAEE), inseridos em instituições educacionais e ao mundo do trabalho”. 

“Formamos cerca de 7.054 professores em diferentes contextos nacionais e internacionais, norteados por um processo educacional inclusivo e inovador no qual as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) e Tecnologias Assistivas (TA) são utilizadas como recursos digitais que potencializam as habilidades humanas e provocam mudanças nas escolas e nos demais ambientes de aprendizagem”, afirma. 

Além disso, o projeto participou da avaliação e catalogação de 19.842 objetos educacionais de acesso público disponíveis no repositório institucional do MEC. Atualmente, tem cinco objetos de aprendizagem premiados, “de uso aberto e amplamente empregado em atividades didático-pedagógicas”, segundo Elisa.

Programa Incluir

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Colagem: Lucas Zanetti

Ana Paula Camilo Ciantelli explica que o programa Incluir, criado em 2005 pelo Ministério da Educação (MEC), foi executado desde sua criação até 2011 por chamadas públicas concorrenciais. Mas que, a partir de 2012, ele passou a ser universalizado, atendendo todas as IFES, em uma política de acessibilidade na universidade de forma ampla e articulada.

Com isso, o MEC criou o “Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência — Viver sem Limites”, em apoio à ampliação e fortalecimento de 63 Núcleos de Acessibilidade nas IFES.

Outro ponto importante foi o Decreto nº 7.611/2011, que, dentre os pontos abordados, destaca que a função dos núcleos de acessibilidade das IFES é “eliminar barreiras físicas, de comunicação e de informação que restringem a participação e o desenvolvimento acadêmico e social de estudantes com deficiência”.

Projeto In@Web: como ele pode ajudar pessoas com deficiência

O In@Web é um projeto do CPIDES que visa desenvolver um Content Management System (CMS), Sistemas de Gerenciamento de Conteúdo — o WordPress é o mais popular atualmente — com acessibilidade nativa, voltado para a geração de conteúdo e exibição, permitindo que produtores de conteúdo com deficiência tenham total independência.

Elisa dá mais detalhes sobre o projeto. “No edital de 2020 o CPIDES conseguiu financiamento para o desenvolvimento do In@Web. Atualmente, o projeto encontra-se com cerca de 80% concluído. Temos dois produtos em desenvolvimento, o primeiro é um site In@web, disponível no endereço www.inclusaonaweb.com, que oferece os produtos do In@web”.

“O segundo produto é o gerador de conteúdo, disponível no endereço frida.inclusaonaweb.com/admin, que oferece ferramentas para a criação e administração de sites com acessibilidade nativa”.

O projeto é visto por Elisa como inovador no país. “Desconhecemos projetos existentes no Brasil que ofereçam exatamente o mesmo produto do In@web. Sabemos que existem empresas que oferecem a criação de sites com acessibilidade, entretanto, o cliente contrata a empresa para que ela desenvolva o site, ou seja, o cliente não possui autonomia para que ele mesmo crie e gerencie o projeto, sendo este um diferencial do In@web”.

Como a psicologia pode contribuir com núcleos de acessibilidade

Durante a pesquisa de mestrado, Ana Paula notou a presença constante de profissionais psicólogos nos núcleos de acessibilidade das IFES. Ela avaliou a importância desse acompanhamento e destacou algumas ações em prol da inclusão dos alunos com deficiência:

  • Escuta, acolhimento e avaliação de suas demandas; 
  • Suporte psicológico, individual ou em grupo, aos estudantes que enfrentam dificuldades em se adaptar e se manter no ensino superior;
  • Realização de sensibilizações, conscientizações, palestras e campanhas que visem à remoção de barreiras atitudinais (preconceitos, estigmas, estereótipos direcionados à pessoa com deficiência) e ao reconhecimento da diversidade no ambiente universitário;
  • Promoção de acessibilidade;
  • Efetivação de orientações e planejamento de estratégias voltadas ao ensino e aprendizagem;
  • Discussão e a revisão das concepções e preconceitos associados à pessoa com deficiência;
  • Contribuição para um clima organizacional saudável dentro do núcleo e na instituição em si;
  • Favorecimento de interações sociais e redes de apoio;
  • Mediação entre o estudante e os outros membros da academia; 
  • Intervenções visando à independência, autonomia, autoestima positiva, aceitação da deficiência;
  • Empoderamento desses estudantes sobre seus direitos.

Como um aluno com deficiência pode solicitar apoio nas universidades

Uma das dificuldades das universidades públicas é disponibilizar informações úteis de forma clara e sintetizada. Ana Raquel Mangili fala sobre como a instituição atuou no fornecimento dos materiais que ela necessitava para poder frequentar as aulas.

“A Diretoria Técnica Acadêmica (DTA) da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru (FAAC) foi a instituição interna que ficou responsável pelo fornecimento dos recursos de acessibilidade que eu requeria”.

Ana Raquel também destacou um dos projetos da universidade. “Outro órgão interno foi o Grupo de Pesquisas em Mídia Acessível e Tradução Audiovisual (MATAV), que produzia a legendagem dos conteúdos audiovisuais que os professores utilizavam em sala. Eu me reportava diretamente a esses dois órgãos quando necessitava de alguma nova adaptação ou ajustes nas já existentes”, afirmou.

A fala evidencia a importância de projetos que têm a acessibilidade universal como ponto de partida nas universidades, e como eles são úteis a quem precisa de suportes ao longo de sua jornada universitária. Vale ressaltar também que vestibulares como o Enem, por exemplo, oferecem atendimento especializado às pessoas com deficiência em suas provas.

Decreto nº 10.502

Ana Paula classificou como um retrocesso o Decreto nº 10.502, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas que está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). “A nova política nacional da educação especial representa um verdadeiro retrocesso e retorno à segregação, bem como as falas capacitistas expressas pelo próprio Ministro da Educação — Milton Ribeiro — recentemente”.

“A universidade é sim para todos, e quando falamos todos, incluímos também as pessoas com deficiência, que são cidadãos e devem ter seus direitos garantidos e respeitados, como o direito à educação em seus diferentes níveis de ensino”, completa Ana Paula.

Elisa Tomoe Moriya Schlünzen também comenta sobre o discurso do Ministro do Governo: “A discussão atual é um retrocesso para a educação inclusiva, pois a nova política definirá os rumos e os avanços conquistados nas últimas décadas para a inclusão da pessoa com deficiência desde o ensino regular ao ensino superior, dando espaço ao possível retorno dos atendimentos segregados e excludentes”.

“Quando o próprio governo infere ou transfere para outro a decisão de quem deve ou não frequentar uma escola, implica diretamente em quem deve ou não ingressar no ensino superior, e os poucos que ainda conseguem estar no meio universitário, acabam por enfrentar outras dificuldades, desde questões de acessibilidade e o preconceito ainda existente referente ao que se é diferente”, completa Elisa.

Permanência estudantil é barreira para alunos com deficiência

Como falamos no início da matéria, estamos vivenciando um aumento de matrícula de pessoas com deficiência nas universidades. Ainda que atualmente o número seja menor do que 1%, a expectativa é que esse número não pare de crescer.

Ana Paula comenta sobre o assunto destacando o fortalecimento da pauta e a necessidade de permanência estudantil. “Um dos grandes desafios atuais é garantir as condições adequadas para que esses jovens permaneçam na instituição e consequentemente concluam seus estudos com sucesso”.

Elisa também vê a permanência estudantil como uma barreira. “As universidades têm buscado esforços para cumprir o preconizado na Lei, mas a maioria não sabe como fazer. Abrir vagas para incluir pessoas com deficiência é uma das metas que está sendo cumprida. Todavia, quando se aborda a questão da permanência, o cenário é outro, pois nos esbarramos em questões que vão desde o acesso ao ensino, até questões de ordem arquitetônicas”.

Processo de construção do ensino superior

Ana Paula fala sobre o processo de construção que o ensino superior está passando quando falamos em inclusão de pessoas com deficiência e acessibilidade na universidade. “Vejo que esse movimento já começou e que cada vez mais as instituições estão mais atentas e se preparando para atender essas necessidades educacionais”. 

“Há maior visibilidade, sensibilização e conscientização sobre a temática, maior cobrança da sociedade, inclusive dos próprios estudantes com deficiência. Precisamos nos apoiar e continuar nesse caminho para alcançarmos um ensino superior que valorize a diferença e atenda toda a nossa diversidade”, conclui Ana Paula.

Elisa Tomoe completa: “É necessário haver mudança de paradigmas, concepções, métodos, estratégias, recursos e práticas, oferecendo-lhe condições para desenvolver a aprendizagem dos estudantes de acordo com suas habilidades e potencialidades, possibilitando um autoconhecimento e o encantamento pela aprendizagem e o desejo de pertencimento”.

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