Tragédia do Rio Grande do Sul: entenda o fenômeno e suas consequências

Tragédia do Rio Grande do Sul: entenda o fenômeno e suas consequências

As fortes chuvas que assolam os gaúchos causaram uma tragédia sem precedentes no Rio Grande do Sul; entenda como ela aconteceu e algumas das consequências para o futuro

O Rio Grande do Sul passa por um de seus piores momentos na história, com as inundações que assolam o Estado desde o dia 26 de abril, quando foram registrados os primeiros alagamentos nas cidades de Canoas, Novo Hamburgo e na capital Porto Alegre.

A previsão para os próximos dias é que haja mais chuvas e ventanias, o que pode manter a situação calamitosa em que o Estado se encontra por mais dias. Soma-se isso ao fato de que boa parte da infraestrutura da região precisará ser reconstruída. 

Pontes foram destruídas, há dezenas de deslizamentos registrados, bombas de sucção comprometidas, e a água ainda não baixou para medir o tamanho da reconstrução que será feita. Mas nenhum reparo trará de volta a vida de mais de uma centena de vítimas que a tragédia deixou até o momento.

São mais de 400 municípios atingidos e um milhão e meio de pessoas afetadas de alguma forma, sendo quase 70 mil delas desabrigadas e refugiadas em abrigos públicos municipais.

O Portal Estratégia Vestibulares trouxe pontos que você precisa saber sobre a tragédia no Estado do Rio Grande do Sul, utilizando reportagens sobre o assunto e uma aula da professora de Geografia do EV, Priscila Lima. Acompanhe abaixo.

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Inundações pós 1941

A maior inundação da história do Rio Grande do Sul até 2024 ocorreu em maio de 1941, quando o lago Guaíba atingiu 4,76 metros. Para se ter uma ideia, é considerado inundação no local quando as águas superam os 3 metros de altura. As enchentes posteriores a 1941, mas que ocorreram antes de 2023, aconteceram em 1967 (3,13 metros) e 2015 (2,94 metros).

Em junho de 2023 o Estado passou por outra grande enchente, causada principalmente por um ciclone extratropical, que atingiu mais de 40 cidades da região metropolitana de Porto Alegre, parte da Serra Gaúcha e o litoral norte.

Em setembro de 2023 outro ciclone extratropical provocou fortes chuvas, levando 91 cidades ao estado de calamidade, principalmente no Vale do Taquari, uma das regiões mais atingidas pela enchente de maio de 2024.

Já em novembro de 2023, a passagem de frentes frias causou mais uma enchente para a região do Vale do Taquari, Serra Gaúcha e toda a região metropolitana de Porto Alegre. Nenhuma dessas tragédias atingiu o nível de 4,76 metros registrada em 1941.

Antes de 2023 aconteceram debates na cidade de Porto Alegre sobre a derrubada do muro do Mauá por algo “que não bloqueasse a visão do Guaíba”. Eram favoráveis à derrubada o atual prefeito da cidade, Sebastião Melo, e o anterior, Nelson Marchezan, dentre outros políticos locais, alguns deles procurando por alternativas mais modernas de contenção, outros, nem isso.

Muro de Mauá e sistema anti-enchentes

Na década de 70, ainda sob influência da inundação histórica de 1941, começou a ser construído o muro de Mauá, uma das estruturas que faz parte do chamado Sistema de Proteção Contra as Cheias e que tem 2.647 metros de comprimento e seis de altura, sendo três deles abaixo do solo. Soma-se ao muro 68 quilômetros de diques, 14 comportas e 19 casas de bombas.

O muro Mauá foi testado pela primeira vez no dia 26 de setembro de 2023, já que em 1967 ele ainda não existia e em 2015, ano da maior cheia do Guaíba até então, a água não chegou aos 3 metros, índice de proteção da obra de contenção. 

Priscila Lima, professora de Geografia do Estratégia Vestibulares, explicou a lógica do sistema anti-enchentes construído no local. “Essas obras de engenharia são feitas e também são pensadas no nível médio, então qualquer evento extremo pode não ser abarcado por aquela obra”.

Isso significa que, em condições normais de uma cheia, o muro e os demais itens desse sistema dariam conta. Não foi o que aconteceu. No dia 6 de maio o nível do Guaíba atingiu 5,27 metros, praticamente 50 centímetros a mais do que a maior inundação da história do local desde então.

Diferenças entre enchentes, inundações e alagamentos

Segundo o Ministério das Cidades, as inundações representam “o transbordamento das águas de um curso d’água, atingindo a planície de inundação ou a área de várzea”. Confira as características utilizadas para definir os três termos:

  • Enchentes: leito menor do rio totalmente preenchido por água;
  • Inundações: quando há ocupação das planícies inundáveis através do transbordamento do leito menor; e
  • Alagamentos: água acumulada por conta de um problema de drenagem.

Para total compreensão, é preciso entender os conceitos dos três tipos de leito: vazante, menor e maior. O leito vazante é onde passa água normalmente em rios perenes, ou seja, o que é comum. 

O leito menor é uma área onde nem sempre passa água, mas pode passar água em períodos de chuva. Este espaço geralmente é demarcado e visível nas bordas (ombreiras) de um leito vazante, sendo um canal visível, uma barra arenosa, por exemplo.

Já o leito maior é composto por toda a planície de inundação existente no local, uma área de várzea que percorre os rios e geralmente é plana, em decorrência de sedimentações. Esse espaço só é preenchido em cheias muito intensas, que não apresentam um período exato de recorrência e pode variar de acordo com o relevo.

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Ao perguntarmos se é um “ponto fora da curva”, a professora Priscila pontua: “qual é a curva?”. “Nós temos um cenário de novas questões e de novos extremos climáticos. Há um debate na ONU para que possa ser refeita essa ideia sobre o que é um padrão climático. Se vai ser considerado o padrão climático a cada 30 anos, se temos que considerar um período mais curto…”

Priscila ainda explica que os eventos extremos colocam em cheque o que era considerado como estabelecido pela ciência. “Tudo que aprendemos até hoje sobre climatologia pode ser contestado porque estamos observando mudanças nesse padrão e essas mudanças, com esses novos extremos, estão associados ao que chamamos de aquecimento global”. 

Causas climatológicas da inundação

As fortes chuvas são o motivo óbvio, mas elas são explicadas por alguns fenômenos da lógica atmosférica que causaram o desastre atual. Um deles são os Jatos de Baixo Nível (JBN), conhecidos como “rios voadores”. A elevada evapotranspiração gerada pela bacia hidrográfica amazônica sai da superfície e atinge a atmosfera.

Já os ventos alísios que saem dos trópicos empurram essa evapotranspiração rumo à Cordilheira dos Andes, e elas voltam para áreas do Brasil, comumente em regiões de Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás.

A formação de uma área de alta pressão estabelecida em níveis médios da atmosfera justamente na região citada acima, que normalmente receberia esses rios voadores, e que cria um bloqueio atmosférico é também um dos fatores que culminaram na tragédia. Os ventos que partem da Amazônia, portanto, estão contornando a área citada e chegando no Rio Grande do Sul.

Outro fator que está acontecendo neste momento é uma massa de ar que está se expandindo no Brasil, a Massa Equatorial Continental (mEc), movimento comum nesta época do ano. A movimentação dessa massa permite a passagem da Massa Polar Atlântica (mPa), que se dividiria em três ramos, criando frio na região Sul e no centro do continente, além das chuvas no Nordeste, em condições normais.

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Mas, com o bloqueio atmosférico momentâneo na região central do Brasil, a mPa não consegue expandir, deixando toda a umidade e temperatura no Estado do Rio Grande do Sul. O choque entre as massas de ar quente dos rios voadores, com a Massa Polar Atlântica, geram o efeito chamado chuva frontal. São, portanto, duas massas de ar úmidas e em colisão.

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Soma-se a esses fatores a formação de um ciclone extratropical próximo ao litoral do estado, o que gera ventos e segura as chuvas no Estado. Por fim, o El Niño está acabando neste ano, surgindo uma fase neutra entre ele e a La Niña, que é prevista para 2024. Em anos de El Niño, há aumento de umidade no sul do País.

O clima do Rio Grande do Sul

O Estado é predominantemente tomado pelo clima subtropical, que tem características como amplitude térmica anual, boa distribuição de chuvas, sem estação seca e com definição notável das quatro estações.

Maio não é um mês com alto índice de chuvas, mas o clima subtropical faz com que as precipitações sejam comuns em todas as épocas do ano. Com todos os fatores climatológicos citados acima, o volume de chuvas em Porto Alegre nos três primeiros dias de chuvas da tragédia foi de 258 milímetros. Na cidade de Santa Maria já choveu próximo a 500 milímetros, que é praticamente um terço do que se espera para o ano em chuvas.

Relevos e bacias hidrográficas

O Rio Grande do Sul conta com uma área de planalto de derrames, e o Vale do Taquari, região que contou com alto volume de chuvas, faz parte desse relevo. Toda a água que cai nessa porção vai descer para áreas mais rebaixadas, se encontrando justamente no lago Guaíba.

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A área destacada no retângulo pontilhado é a região do Vale do Taquari, que conta com vales encaixados como relevo

Essa região conta com vales encaixados, que são profundos e escarpados, que causam, em grandes chuvas, movimentos de massas, como deslizamentos e desmoronamentos. Além disso, o solo desse vale é basáltico, que é menos poroso e, em decorrência disso, faz com que mais água desça para o lago Guaíba, que é onde a maior parte da população gaúcha se concentra.

O lago Guaíba deságua na Lagoa dos Patos, que é uma planície lacustre, a única do Brasil, e que tem como característica sua formação por acúmulo de sedimentos em lagos. Importante ressaltar que o Guaíba tem comportamento dual e apresenta características de lago nas suas margens e de rio no seu meio.

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Bacias hidrográficas do Estado do Rio Grande do Sul e Distribuição da população absoluta

Toda essa água, portanto, ao chegar na Lagoa dos Patos, passa a ter uma única saída, mais ao sul, próximo à cidade de Rio Grande. Uma solução possível e que já foi proposta, que poderá ajudar a vazão da água no futuro, é a construção de canais na lagoa dos patos, proporcionando novas saídas para o mar.

Reconstruções pelo Estado e impacto no Brasil

A água ainda não baixou até esse momento, mas já há alguns cenários possíveis e estruturas destruídas. São barragens rompidas, pontes que foram destruídas, transbordamento de diques, refluxo de águas por bueiros e bombas de sucção incapazes de extrair a água. São 23 bombas em Porto Alegre, mas apenas quatro conseguiram suportar o alto volume de água dos primeiros dias de chuvas.

Até o presente momento, a previsão é que, para reconstruir a infraestrutura atingida, será necessário gastar pelo menos 19 bilhões de reais, isso em cálculos iniciais estimados pelo Governo do Estado.

O setor de transporte e telecomunicações precisará de grandes investimentos para recuperação plena no Estado. Além das estradas e pontes destruídas, cabos de telefonia e energia foram rompidos e o aeroporto está alagado.

O saneamento básico também precisará passar por reformas para possibilitar condições plenas de esgotos e acesso à água potável: 85% da população da capital gaúcha foi afetada com a falta de água potável. Priscila também fala sobre possíveis doenças. 

“Pesquisadores já estão apontando um possível caso de surto de dengue no Rio Grande do Sul, afinal o final de 2023 e o início de 2024 foi um momento marcado pelo aumento dos casos de dengue no Brasil e o que nós temos na região afetada, em grandes dimensões, é água parada. Então é bem provável que, infelizmente, a população também tenha que lidar com possíveis doenças”, completa Priscila.

Para além do Estado, há também prejuízos que podem afetar o País como um todo. O Rio Grande do Sul é o maior produtor de arroz do Brasil, sendo responsável por 90% do abastecimento do grão. Produtores locais garantem que não haverá problemas com o abastecimento, mas o Governo Federal já anunciou a compra de mais de um milhão de toneladas de arroz da Tailândia.

O Estado também é o terceiro maior produtor de soja do Brasil. Priscila explica o impacto do grão na economia brasileira. “Se a soja fica mais cara há também um aumento do preço da ração para animais,  e isso vai impactar no preço da carne. É uma cadeia produtiva: o aumento do preço da soja gera um aumento no preço do biodiesel, já que a soja é o principal produto para a criação para a produção de biodiesel no Brasil”.

“Além disso, o Rio Grande do Sul é um grande produtor de milho, trigo, de frango e de frutas, então nós temos aqui um cenário de impacto econômico muito grande”, explica a professora.

Tragédia anunciada?

Em reportagem do Portal UOL, há uma cronologia até a enchente atual, propondo uma reflexão sobre os acontecimentos e reações anteriores à tragédia. As inundações de 2023, por exemplo, são consideradas avisos sobre uma mudança de comportamento do clima nas regiões atingidas.

Discussões políticas sobre o aparelhamento da Defesa Civil do Estado e investimentos para combater desastres naturais em 2024 tomam conta do noticiário e serão pautas para os próximos meses.

Há também o fato de que o atual governador do Estado, Eduardo Leite, alterou quase 500 pontos do código ambiental do Rio Grande do Sul, no que ele chamou de modernização, já que, segundo ele, as atualizações trariam “um melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico”.

Dentre os pontos mais criticados nesta atualização, estão: aprovação de projetos sem análise prévia por nenhum técnico, apenas contando com a boa-fé dos empresários; flexibilização da proteção ao Pampa e da lei que trata da construção de barragens e reservatórios de água dentro de áreas de proteção ambiental; supressão de trechos que proibiam corte de árvores como figueiras, corticeiras e algarrobos; e desaparecimento de itens que regulamentavam o manejo de florestas nativas.

Impacto das mudanças climáticas na região

Priscila Lima explica sobre o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 2022, que diz, categoricamente, que o ser humano é um dos responsáveis pelas mudanças climáticas, e adverte sobre impactos irreversíveis

“Quando a gente pensa no cenário de mudanças climáticas, essa área (sul do Brasil) está sendo projetada como uma área onde nós teremos mais calor e principalmente o aumento de eventos extremos relacionados à questão hídrica”, finaliza.

A dengue, citada acima, é um dos pontos citados, já que o aumento da temperatura do planeta pode causar o aumento da proliferação de mosquitos. O aumento no número de casos de problemas que afetam a saúde mental dos humanos também é citado no relatório como um ponto que tem relação com as mudanças climáticas, e isso pode impactar também a população gaúcha.

Medidas preventivas para o futuro

“A essência do da prevenção é conseguir ver o processo. Você tem que anteceder o processo, tem que saber o quanto que vai chover, tem que saber quais são as estruturas geológicas, como é o solo da região, como é o relevo da região, como a bacia hidrográfica funciona, quanto de água que essa bacia suporta, qual é o limite para que haja um transbordamento ou não. O primeiro passo é ler a realidade”, pontua a professora.

Dentre as medidas preventivas listadas pela professora estão ampliar a rede de monitoramento pluviométrico, algo que o Governo do Estado já fez, comprando um radar meteorológico mais moderno, mas que ainda não começou a operar e tem previsão de início de atuação no segundo semestre.

Além disso, ela cita a criação de um sistema de modelagem hidrodinâmica, um sistema de sinalização para a comunidade e educar a população sobre como agir em situações de risco. “Não adianta que o governador, que o secretário, que o pesquisador da UFRGS, saiba (as previsões sobre o tempo), se essa informação não chegar para a população. Ela precisa chegar também para quem vive no Rio Grande do Sul”. 

“Precisa ter um sistema de sinalização para a comunidade, uma educação para situação de risco, para que, quando falar ‘olha vai chover muito em Porto Alegre’, ou então ‘vai chover muito na cabeceira dos rios, Porto Alegre vai passar por uma inundação, vocês precisam sair de tais pontos’. As pessoas precisam saber como elas saem, para onde elas vão. Precisa ter essa organização”, raciocina a professora sobre o futuro.

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