Na leitura da obra “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, eu fui me questionando sobre algumas informações que o narrador dava acerca de seus personagens ou acerca do Rio de Janeiro da época. Fiz uma lista de perguntas e a submeti ao professor Marcos Túlio, de História.
A seguir, transcrevi a entrevista com fiz com ele. O professor deu informações relevantes que ajudam o leitor de O Cortiço a entender melhor a sociedade carioca do final do século XIX. Ele falou sobre escravidão, processo eleitoral, dotes e temas afins.
Fernando: Numa parte do texto, o narrador se refere às discussões em torno da Lei Rio Branco. O que lei foi essa, por que gerou discussões?
Marco Túlio: A Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, foi aprovada em 28 de setembro de 1871 e considerava livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data.
A fim de atender aos interesses dos senhores de escravos, ela estabelecia que as crianças deveriam ser tratadas pelos seus donos até os oito anos de idade, podendo em seguida ser entregues ao governo em troca de uma indenização, ou terem seus serviços utilizados até os 21 anos de idade.
A Lei do Ventre Livre foi criticada não somente pelos proprietários de cativos, ameaçados pela possível perda de suas peças, mas também pelos abolicionistas, que apontaram a inaplicabilidade, pois muitos nascidos no pós-1871 continuaram a ser escravos.
Fernando: Num trecho, sobre Firmo, o narrador afirma: “Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; … chegara a decidir eleições nos tempos do voto indireto (…), mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou às lutas eleitorais”. Que mudança foi essa?
Marco Túlio: O sistema eleitoral sofre duas grandes mudanças em 1881, quando é aprovada uma reforma por meio da Lei Saraiva. Até então, prevalecia o voto indireto, no qual os cidadãos escolhiam alguns representantes, e estes votavam em quem seriam os deputados e senadores. Com a reforma eleitoral, é introduzido o voto direto, sendo eliminados intermediários entre os cidadãos e os candidatos.
Outra transformação significativa foi a proibição do voto do analfabeto, que prevaleceria até a nossa Constituição de 1988. Isso reduziu significativamente o número de eleitores do Império, afinal somente 20% da população masculina era alfabetizada.
Para se ter uma ideia do impacto, em 1872 havia mais de 1 milhão de votantes no país, ou seja, 13% dos homens livres. Já em 1886, após a aprovação da Lei Saraiva, esse número caiu para 100 mil eleitores, ou seja, 0,8 % da população total.
Fernando: A situação retratada dos escravos no livro é bastante variada. Bertoleza é uma escrava que vive como quitandeira longe de seu senhor (ele mora em Juiz de Fora); Valentim, filho de uma escrava alforriada é um protegido de Dona Estela. Fora esses, aparecem mais trabalhadores braçais e menos escravos. Qual era a situação dos escravos nesse período, no Rio de Janeiro?
Marco Túlio: Quando pensamos na escravidão no Brasil, quase sempre vêm à nossa mente a figura do cativo trabalhando ou sendo castigado em uma paisagem rural, não é mesmo?
Pois no Rio de Janeiro o cenário era bem diferente, afinal de contas, escravizados, libertos e homens livres conviviam nas estreitas ruas da cidade, onde a geografia impedia que a população cativa fosse isolada dos demais.
Também é preciso levar em conta que nas últimas décadas do século XIX, a população escrava do país havia decrescido significativamente. De acordo com o censo de 1872, havia 48.939 escravos na Corte, o que correspondia a 18,2% da população total.
Essa redução se deve a uma série de fatores, entre eles o aumento das alforrias, obtidas a partir do envolvimento de escravos em atividades remuneradas. Tais ofícios permitiam aos cativos acumular algum pecúlio, e com ele, comprar sua liberdade.
Fernando; A virgindade parece ser um capital importante para as mulheres. Seja porque ela vale algo para os homens, seja porque ela é associada ao dote. Pombinha não tem dote, mas tem a virgindade; D. Estela tinha dote. Como funcionava esse sistema de dote?
Marco Túlio: No Brasil do Império, assim como em outros locais estruturados pelo patriarcalismo, as famílias abastadas transferiam dinheiro, bens ou propriedades para aqueles que se casassem com suas filhas, sendo este costume chamado de dote.
Entre as elites, o matrimônio estava condicionado à interesses econômicos, políticos e sociais, e por isso era encarado como um contrato que deveria trazer vantagens às famílias envolvidas.
Nesse ambiente de supremacia masculina nas relações sociais, a virgindade feminina era algo indispensável, afinal garantia a continuidade de uma linhagem e envolvia noções de herança e propriedade.
Em alguma medida, tais valores e códigos de conduta influenciavam às populações mais pobres, mas seus casamentos não costumavam ser acertados entre as famílias, e não envolviam dotes.
Fernando: O texto afirma sobre Botelho “em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África, negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina.” Parece que Botelho viveu dois ciclos de microeconomia distintos: a venda de escravos e a especulação com a Guerra do Paraguai. Como esses ciclos funcionaram?
Marco Túlio : O comércio de escravos no Atlântico foi extremamente lucrativo até meados do século XIX, formando uma rede de interesses econômicos que envolveu brasileiros, africanos, portugueses e indivíduos de outras partes do mundo.
Contudo, a aprovação da Lei Eusébio de Queirós (1850) minou a continuidade do tráfico negreiro, ao mesmo tempo em que permitiu o acúmulo de recursos que passaram a ser investidos em outros setores, como a indústria naval, a ferroviária e de comunicações.
Esse crescimento foi denominado por muitos historiadores de Era Mauá, em referência ao principal empresário do Segundo Reinado.
Fernando: No momento em que a polícia quer invadir o cortiço, o narrador afirma: “A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho”. Você pode comentar essa passagem?
Marco Túlio: O “ódio velho” a que se refere o romance evidencia uma política de violência conduzida pelo Estado e dirigida às classes marginalizadas que habitavam precárias habitações da Corte.
No imaginário das elites da época, povoado de ideias racialistas, os cortiços eram habitações repulsivas, imorais e perigosas dos setores subalternos, afinal ali conviviam estrangeiros, libertos, escravos, bêbados, vadios e prostitutas.
Dessa maneira, os cortiços e outras zonas de habitações precárias eram vistas como um caldeirão em ebulição, e por isso demandavam constante vigilância das forças policiais.
Fernando; Quando surge um outro cortiço, o narrador comenta a respeito de seu proprietário “um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações.” Havia uma relação entre cortiços e abastados senhores?
Marco Túlio: Quando falamos de cortiços e seus proprietários abastados, permanece no imaginário popular a figura do Conde D’Eu, marido da princesa Isabel e suposto proprietário dos casebres que formavam o Cabeça de Porco, um dos mais famosos cortiços do Rio de Janeiro.
Embora faltem estudos sobre os proprietários dessas habitações, sabemos que eles pertenciam às classes mais abastadas, e que deixavam seus imóveis ou terrenos aos cuidados de pequenos comerciantes.
Estes se encarregavam de erguer pequenas casas ou dividir a estrutura já existente, formando várias moradias precárias e dispendiosas que eram alugadas para as camadas pobres da população do Rio de Janeiro. Assim como João Romão, os arrendatários também mantinham pequenos comércios em edificações anexas aos cortiços.
Fernando: No final, João Romão recebe uma homenagem de uma comissão de abolicionistas, sendo que João Romão não era de forma nenhuma um abolicionista. Depois da Lei Rio Branco até que ponto o movimento abolicionista era sincero, até que ponto era composto de aproveitadores de última hora? O que se ganhava com isso?
Marco Túlio: O abolicionismo foi provavelmente o primeiro movimento social de proporções nacionais da nossa história, e envolveu parcelas das elites urbanas, setores médios e escravizados.
Na década de 1880, contexto em que se passa O cortiço, sua pauta já era predominante na opinião pública, então é provável João Romão tenha se colocado como um abolicionista visando prestígio e interesses pessoais.