Mais do que marcar a passagem dos eventos em uma história, o tempo narrativo é um recurso fundamental na construção da experiência do leitor.
No contexto de vestibulares, compreender os tipos e recursos temporais é fundamental para analisar obras literárias com maior clareza e responder questões que exigem interpretação de trechos narrativos mais complexos.
Pensando nisso, o Estratégia Vestibulares preparou este guia para te ajudar a dominar o tempo narrativo e seus tipos, com análise dos principais clássicos da literatura brasileira. Confira!
Navegue pelo conteúdo
Conceito e importância do tempo narrativo
O tempo é um dos principais elementos da narrativa em prosa. Ele organiza a sucessão, duração e percepção dos eventos, dando sentido à história.
Assim, a organização temporal dos fatos influencia fortemente a forma como sentimos, compreendemos e acompanhamos a história.
Tipos de tempo narrativo
Em geral, o tempo pode ser de dois tipos:
- Cronológico (ou histórico): os eventos ocorrem de maneira linear, marcados pelas horas, dias e anos, podendo ter relação com o tempo real ou não; e
- Psicológico (ou subjetivo): quando está relacionado à percepção, lembranças, sentimentos e fluxo de consciência das personagens. Desse modo, a dilatação ou compressão temporal está na mente dos personagens. Um exemplo disso é quando um momento de tensão parece ter uma duração maior na narrativa.
Como diferenciar os tipos de tempo narrativo
Para identificar se o tempo narrativo é cronológico ou psicológico, é possível observar os seguintes aspectos na história:
- A presença de marcadores temporais concretos, como horas, dias ou anos (ex.: “passou-se um mês”, “era 1990”), um forte indicador de tempo cronológico;
- A linearidade dos acontecimentos, se é próxima à realidade objetiva (tempo cronológico); e
- A presença de uma percepção interna das personagens, com momentos de introspecção, podendo parecer mais rápido ou mais lento de acordo com os sentimentos expressos (tempo psicológico).
Observe como isso acontece na prática nos trechos literários a seguir:
“Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver.”
LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
“Fabiano, sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade. Eram três horas, fazia grande calor, redemoinhos espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.”
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 120. ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Perceba que no trecho de Perto do Coração Selvagem, de Clarice Lispector, há claramente o uso de tempo psicológico, um recurso característico da autora que reflete a percepção subjetiva do tempo. Na parte “Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco.” há uma pausa psicológica, criando uma sensação de tempo estagnado, típico da introspecção de Joana (a protagonista).
Por outro lado, no fragmento de Vidas Secas, a marcação do tempo é nítida, funcionando de maneira objetiva e funcional, a fim de situar o leitor no contexto de tempo e espaço da narrativa.
Marcação temporal na narrativa
Em uma narrativa há dois tipos de marcação temporal: os tempos externos e internos.
Tempos externos
Os tempos externos são os tempos do escritor e do leitor. O tempo histórico em que o escritor se encontra pode influenciar na construção da sua narrativa e no comportamento de suas personagens, contendo traços dos valores de sua época. Isso pode ser observado em obras de movimentos literários brasileiros, como o Naturalismo e o Romantismo.
Por outro lado, o tempo do leitor pode interferir significativamente na interpretação de uma obra, especialmente se a distância entre a época em que foi escrita e a que o leitor se encontra for grande. Por exemplo, um leitor dos tempos atuais pode não compreender termos, costumes e questões sociais contidos em obras literárias do século XIX.
Tempos internos
O tempo interno da narrativa é a maneira como o tempo é construído e manipulado dentro do texto literário. Há dois tipos de tempos internos diferentes, embora intrinsecamente relacionados:
- Tempo da história: é o tempo em que os acontecimentos ocorrem dentro do mundo narrado. Em outras palavras, é o que se passa com os personagens, em ordem sucessiva e cronológica, podendo ser mensurado em horas, dias ou anos; e
- Tempo do discurso: é o tempo da narração em si, ou seja, o tempo que o texto dedica para contar esses acontecimentos (como e quanto o autor decide narrar). Esse tempo é medido pela sua extensão (número de linhas, parágrafos ou páginas) e também pode ser observado a partir dos recursos narrativos empregados.
Recursos do tempo narrativo
Desse modo, um enredo pode ter seu tempo do discurso manipulado por quatro recursos principais de duração, que interferem no ritmo da leitura e criam tensão na narrativa: sumário, cena, pausa e elipse.
Sumário
É a parte que resume os eventos de um período da história em poucas palavras ou parágrafos e de modo acelerado. Porém, cuidado: o sumário nesse caso não é sinônimo de índice, mas de síntese. Ele pode ser usado para resumir anos de vida de um personagem em uma frase, apenas contando o que ocorreu em determinado tempo e lugar, por exemplo.
Cena
É o momento da história em que os acontecimentos se desenrolam diante do leitor, em tempo contínuo, com foco em ações, falas e interações dos personagens, como se estivessem sendo encenados em tempo real. Assim, representa um espaço-tempo definido onde o enredo se mostra, em vez de ser apenas contado.
Pausa
Segundo a definição proposta por Gérard Genette em Figures III (1972) – obra fundamental da narratologia –, é um recurso narrativo que se caracteriza por uma interrupção no tempo da história (os eventos reais da narrativa) para privilegiar o tempo do discurso (a forma como a narrativa é contada).
Nesse sentido, o avanço da história é momentaneamente suspenso para dar lugar a descrições, comentários ou reflexões do narrador.
Elipse
Trata-se da omissão de um período da história, pulando eventos para avançar a narrativa rapidamente. Dessa forma, podem ser avançados dias, meses e anos para focar apenas em momentos-chave da trama.
A elipse pode ainda ser de três tipos, consoante Genette (1972):
- Elipse explícita: quando é claramente identificado na narrativa com expressões como “Um mês depois” ou “Muito tempo depois”;
- Elipse implícita: quando não está claramente empregada e só se pode inferir pelas informações fornecidas; e
- Elipse hipotética: a qual omite eventos que não ocorreram, mas que são sugeridos como possibilidades alternativas. Isso cria um efeito de suspense, ambiguidade ou reflexão, levando o leitor a especular sobre um cenário que poderia ter existido. Um exemplo clássico de elipse hipotética é a questão de Capitu ter traído ou não Bentinho em Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Manipulação da ordem temporal na narrativa
A forma como o narrador apresenta os fatos pode ser linear (cronológica), quando os tempos do discurso e da história obedecem à mesma sequência, ou não linear.
Quando a narrativa é não linear, pode haver manipulações da ordem temporal, denominadas anacronias (analepse e prolepse). Essas manipulações influenciam a percepção cronológica e psicológica do tempo no enredo e serão melhor explicadas a seguir.
Analepse
A analepse é uma referência ao passado do personagem. Esse termo abrange qualquer retrospectiva ou volta ao passado, como menções, resumos, reflexões ou descrições detalhadas de eventos anteriores, sejam narrados diretamente, evocados por personagens ou implícitos.
Um exemplo de obra construída predominantemente por analepse é Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, narrada pelo defunto autor (protagonista):
“(…) Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
— Onde estamos?
— Já passamos o Éden.
— Bem; paremos na tenda de Abraão.
(…)”
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 9.
Analepse vs. flashback
O flashback é uma forma específica de analepse, apesar de frequentemente aparecer como um sinônimo para analepse. Ele não se resume à citação de um acontecimento no passado, mas retoma uma cena em sua totalidade, com todos os seus detalhes dramatizados.
Prolepse
A prolepse é a antecipação de acontecimentos ou informações na narrativa e é menos comum que a analepse. Nesse sentido, pode incluir não apenas cenas futuras, mas também comentários, resumos ou alusões a algo que ainda vai ocorrer.
Prolepse vs. flashforward
O flashforward é um tipo específico de prolepse, mais comum em mídias visuais como cinema, séries e literatura contemporânea. Trata-se de uma cena concreta que transporta o público diretamente para um momento futuro da narrativa, mostrando eventos que ainda não ocorreram.
Portanto, o uso de anacronias em um enredo pode ter várias finalidades: recuperar eventos não abordados em seu tempo, manter a expectativa do leitor com informações antecipadas ou caracterizar personagens retrospectivamente.
Como o tempo se relaciona com outros elementos da narrativa
Ademais, o tempo na narrativa além de se relacionar com o enredo em si, está diretamente ligado aos personagens, espaço e foco narrativo:
- Enredo: a manipulação temporal estrutura todo enredo, criando situações de tensão, mistério ou clareza.
- Personagens: o tempo define a evolução psicológica e as ações das personagens, a partir de recursos que manipulam a ordem narrativa, revelando sentimentos passados ou sugerindo motivações futuras.
- Espaço: o tempo interage com o espaço ao contextualizar cenários. Um exemplo simples disso é a descrição de um lugar conforme a época narrada.
- Focalização: o tempo narrativo também pode variar conforme o ponto de vista de quem narra. Nesse sentido, um narrador personagem pode trazer à tona lembranças de forma subjetiva.
+ Veja também: 11 questões sobre Machado de Assis que já caíram nos vestibulares e Enem
Realismo: conceito, pintores e características da Arte do século XIX
11 citações de Machado de Assis para usar na redação
11 citações de Graciliano Ramos para usar na redação
Estude com o Estratégia!
Gostou desse conteúdo? Então venha conquistar sua aprovação com o Estratégia Vestibulares! Descubra uma plataforma que oferece um suporte completo, personalizado e eficiente para o vestibular.
Estude no seu ritmo, no formato que preferir (videoaulas, resumos, simulados e questões inéditas) e de onde estiver. Clique no banner e prepare-se com o EV!