A Comvest divulgou nesta terça o gabarito oficial da prova. E, entre questões de português, pelo menos a questão de 58 pode ter o gabarito anulado ou trocado. Por isso, escrevo esse artigo para explicar os meus argumentos para a questão.
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A Questão 58
Ao descrever a rotina do protagonista Raimundo Silva, o narrador da História do Cerco de Lisboa afirma que só restaram fragmentos dos sonhos noturnos, “imagens insensatas aonde a luz não chega, indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos os direitos e disporem de todas as chaves.”
(José Saramago, História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.122.)
Com base nesse excerto e relacionando-o ao conjunto do romance, é correto afirmar que o narrador é
a) polifônico, pois, ao considerar todos os pontos de vista das personagens, relativiza a visão de mundo e respeita a privacidade delas.
b) observador, pois dissimula sua avaliação política da realidade ao se mostrar empático ao mundo das personagens.
c) protagonista, pois, ao fazer parte da própria narrativa, assemelha-se às demais personagens e não pode duvidar dos protocolos necessários para contar a história de Portugal.
d) onisciente, pois simula ser tolerante com a pluralidade de vozes narrativas, mas é a singularidade de seu modo de narrar que produz a coesão e a autonomia da narração.
Comentários
Antes de adentrarmos no RECURSO propriamente dito, vamos relembrar a resolução desta questão, que já estava bem detalhada.
Alternativa “a”: correta – gabarito. Sobre a estrutura do romance A História do cerco de Lisboa, vamos resgatar o nosso PDF:
- RELATO DENTRO DE UM RELATO. Este romance de Saramago enreda várias histórias em conjunto. As principais são a do cerco de Lisboa, episódio constitutivo da história de Portugal e a história mundana de Raimundo Benvindo Silva, e sua história de amor se entrelaça com a de Mogueime e Ouroana, os quais acabam por se tornar avatares de Raimundo e sua namorada Sara Maria. No meio disso tudo, há a história dos milagres de Santo Antônio, há paródias bíblicas entro outros. Logo, há constantemente troca de narradores. #DicadaProfa: utilizem um lápis para grifar essa troca de narradores para não se perderem, ou ao menos tentem identificar onde ocorrem essas mudanças.
Pelo fato de trabalhar com a ideia de mais de um narrador, podemos considerar a sua estrutura como sendo polifônica, isto é, possuindo mais de uma voz. A visão de mundo é constantemente relativizada, sobretudo por meio de explicações filosóficas a partir de pensadores como Isaac Newton (3ª lei: toda ação tem uma reação); a contingência do mundo de Leibiniz e a prova cosmológica de Kant como explicações do universo. Viver é quase impossível, dado que tudo está numa tal contradança que seria muito improvável que os fatos acontecessem.
E ainda a folha em branco é comparada ao que o filósofo Locke em sua obra Sobre o entendimento humano chamava de: “tábua rasa, para falar com plena propriedade de linguagem” (SARAMAGO, 2013, p. 122).
Quanto ao narrador respeitar a privacidade das personagens, ele nem o seria capaz, uma vez que a ideia do todo/do conjunto não é dada nem à personagem nem ao narrador, já que tudo pode ser relativizado. Isso também pode ser constatado a partir do trecho: “imagens insensatas aonde a luz não chega, indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos os direitos e disporem de todas as chaves.” (grifo meu). Dessa forma, qualquer noção de totalidade seria uma ilusão.
Alternativa “b”: incorreta. Ele não dissimula avaliação política (não toma partido de D. Afonso Henriques, por exemplo, pelo contrário, fala que o rei não tinha dom da eloquência, sendo ofuscado por vozes mais fortes na época, como a de Mogueime) nem comenta sobre a política da modernidade no outro relato. Por outro lado, nem sempre se mostra empático com as personagens, mas sim, constantemente irônico.
Alternativa “c”: incorreta. Há mais de um narrador no romance e não podemos afirmar que ele seja narrador protagonista, pois, por exemplo, Raimundo vivia na modernidade (de uma época desconhecida, na realidade, pois não é exatamente especificada no romance; apenas sabemos que se trata da era moderna por alusões a invenções como telefone, carro, marca texto, cartão de crédito etc.) e não em 1.147 (data do cerco, quando se passa o outro relato).
Alternativa “d”: incorreta. O narrador não é onisciente, pois não sabe de tudo, há fatos que, mesmo para ele, são indevassáveis, isto é, inacessíveis, inalteráveis. E a pluralidade de narradores é que cria a consequente pluralidade de vozes.
Gabarito: A
Recurso
A UNICAMP declarou em seu gabarito oficial que a resposta era D, mas continuo sustentando que é a A. Trata-se de um romance extremamente complexo, de forma que acredito que quanto mais informação eu disponibilizar para ajudar vocês, alunos, melhor.
Há no mínimo 3 narradores em História do cerco de Lisboa. No próprio trecho utilizado pela questão, há a alusão a “os narradores”, no plural. São estes:
- o narrador do próprio Saramago;
- o narrador do escritor anônimo dentro do livro (que é historiador e escreve um romance histórico); e
- o narrador do revisor Raimundo, que da noite para o dia passa de revisor para o escritor, cujo narrador consegue ser ainda mais prolixo do que o do próprio Saramago (há alguns pequenos detalhes na narração que tornam possível essa distinção).
Há ainda mais uma hipótese (apenas uma conjectura): que o escritor dentro do romance é o próprio Saramago, uma vez que aquele não tem nome. De qualquer forma, ainda que isso fosse verdade, haveria ao menos 2 narradores: o do Saramago (o mesmo que o do escritor historiador) e o de Raimundo.
Assim, configuramos que o narrador de Saramago é polifônico, uma vez que no romance é explorado o desenvolvimento de várias vozes, conforme a análise detalhada a seguir.
A questão é a seguinte: o narrador não poderia ser onisciente, porque onisciente é Deus, isto é, uno e indivisível, e há divisão de narradores em História do cerco de Lisboa.
A alternativa A está mais próxima da verdade, pois o narrador dá margem a várias vozes, uma vez que no romance há relatos dentro de relatos, ele relativiza sim pontos de vista e inclusive explica seus métodos filosóficos ao fazer isso, e por fim ele respeita a autonomia/privacidade das personagens, pois tem consciência da sua limitação e que ele não tem a visão do todo, ninguém tem.
Se tivesse, seria narrador onisciente como quer a alternativa D, mas o próprio trecho da questão diz o contrário: há fatos que são indevassáveis, isto é, impenetráveis, inalcançáveis, mesmo para os mais espertos dos narradores.
O narrador não tem outra opção a não ser deixar as personagens na sua privacidade, pois a ele não é dado acesso ao todo. Nem a relação sexual entre Raimundo e Maria Sara é descrita com detalhes, tudo é vago e o livro termina com a metáfora da sombra.
Tudo isso corrobora com a tese principal do romance: aquele que detém uma única versão da história (narrador onisciente) estaria errado, pois desconhecemos tudo, até mesmo aquilo que mais julgamos conhecer, como é o caso da História Oficial.
Ainda que o trecho da questão estivesse falando do primeiro narrador, pois a vida sendo narrada era a do revisor Raimundo Silva, logo, o relato pertenceria ao primeiro narrador do Saramago então, a tipologia da questão da UNICAMP cobrava a relação do trecho com o todo do romance, o que nos permite levar os outros narradores em consideração também.
Ainda em relação a essa tipologia, as alternativas se dividiam em 2 partes: uma informação direta e a sua respectiva explicação. Eu apoio que a alternativa D já se excluiria pela primeira parte; porém, podemos ainda analisar a segunda.
O narrador não é dissimulado, ele não simula exatamente ser “tolerante com a pluralidade de vozes narrativas”, é ele o próprio causador dessas pluralidades, e vale-se de métodos diferentes para dar voz às personagens, desde o discurso direto (que em Saramago é introduzido por vírgulas) até o discurso indireto livre.
Além disso, não “tolerante” quer dizer segundo o Dicionário Aulete Digital: que releva e aceita as falhas alheias; indulgente; que aceita e respeita ideias ou comportamentos distintos dos seus. Isso não é verdadeiro nem se aplica a todos os narradores, uma vez que o narrador de Saramago (se é apenas este o que está sendo considerado na alternativa D) é extremamente crítico e julgador, por exemplo, da religião.
Por exemplo: quando um muçulmano ajuda o almuadem a subir para “ver” melhor o espetáculo do cerco de Lisboa, quando no fundo o almuadem é cego e não pode ver, constituindo isso num humor negro. A personagem da narrativa de Saramago diz:
“Não importa, vem comigo à muralha, eu digo-te tudo, a formosas atitudes como esta costumávamos nós chamar caridade cristã, o que uma vez mais vem demonstrar quanto as palavras andam ideologicamente desorientadas” (grifo meu), embora não seja cristão, mas sim muçulmano. Isso não é ser tolerante, mas também não é desrespeitar, apenas se trata de uma crítica a religião, uma vez que este é um traço autobiográfico: Saramago era ateu.
Sobre a segunda parte da alternativa D, a alternativa dizia assim: “mas é a singularidade de seu modo de narrar que produz a coesão e a autonomia da narração”. O pronome possessivo marcado nos faz inferir que essa singularidade diz respeito apenas ao narrador de Saramago.
Dizer que a singularidade de apenas UM dos narradores é o que permite “a coesão e a autonomia da narração” é reduzir a grandeza e a complexidade da obra a um só narrador, ao passo que no fundo o romance é caleidoscópico e um dos mecanismos que fazem manter a coerência interna é justamente esse método elíptico: a repetição de temas, formas e motivos com variações, em maior ou menor grau.
Várias obras do século XX se valem desse método, não só a de Saramago. Para ficar em apenas alguns exemplos posso citar Finnegans Wake de James Joyce e José e seus irmãos de Thomas Mann.
Isso enquadra José Saramago como parte integrante do Modernismo, adequando-se ao seu método inclusive, aderindo ao experimentalismo, muito mais do que respeitando o narrador onisciente da literatura tradicional.
Análise do trecho completo
O trecho completo, ao contrário de outros parágrafos enormes de Saramago, era surpreendentemente curto; logo, iremos analisá-lo por completo.
Cometido este gesto notável, os passos seguintes repetiram a rotina habitual, pela última vez referida aqui, salvo ocorrendo variantes significativas, e que foi barbear-se, banhar-se, alimentar-se, e depois abrir a janela para arejar a casa até aos seus recessos profundos, a cama, por exemplo, com os lençóis plenamente expostos e já frios, sem vestígios da inquieta insónia, menos ainda dos sonhos que o exausto sono acabou por trazer, fragmentos só, imagens insensatas aonde a luz não chega, indevassáveis até para os narradores, que as pessoas mal informadas acreditam terem todos os direitos e disporem de todas as chaves, se assim fosse acabava-se uma das boas coisas que o mundo ainda tem, a privacidade, o mistério das personagens.
O tempo continua chuvoso, porém não tão diluvianamente como ontem, a temperatura parece ter descido, feche-se pois a janela, tanto mais que a atmosfera da casa já se purificou com o sopro revigorante que vinha do lado da barra. São horas de trabalhar (SARAMAGO, 2013, p. 121-122, grifo meu).
Em destaque, está o trecho cobrado na questão. O “gesto notável” é o fato de que Raimundo Silva joga na pia a tinta com que pintava seus cabelos, tentando enganar a passagem do tempo e a própria velhice.
Isso ocorre após ele ir pessoalmente à editora, depois de ter cometido o erro de colocar um Não na História Oficial, onde não havia, criando aí um paradoxo. O trecho “salvo ocorrendo variantes significativas” comprova a repetição com alteração.
O narrador narra com detalhes a rotina de Raimundo, mas intencionalmente opta por não descrever seus sonhos, pois tem consciência de seu limite e sabe que lá ele não chega. Ora, nem o narrador sabe o que sonhara Raimundo.
Esse dado não é fornecido ao leitor, nem está ao alcance da sabedoria do narrador, que NÃO é onisciente. E todas as pessoas que pensam saber tudo e ter a chave para todas as respostas são julgadas pelo próprio narrador de Saramago como sendo “mal informadas”. Sabe de nada, inocentes.
Logo depois, ele defende a privacidade do personagem também propositalmente, para disfarçar a sua própria ignorância. A autonomia da personagem não é mantida espontaneamente, mas porque nem tudo sobre ela é conhecido.
Sobre o tempo e as coisas objetivas o narrador narra tudo com pormenores; mas o ser humano, esse é indevassável – é um mistério. Narrá-lo por completo beira o impossível e tudo o que faz o narrador é uma tentativa.
O narrador de Raimundo Silva, por exemplo, opta sempre pelo meio-termo: talvez estivesse ele o mais próximo da verdade. Como é dito em História do cerco de Lisboa: “Enfim viver não é apenas difícil, é quase impossível”.
Crítica literária
Para apoiar a minha decisão, selecionei trechos da crítica literária que explicam conceitos da teoria literária, sendo estes: ponto de vista (ou perspectiva); polifonia (alternativa A) e narrador onisciente (alternativa D).
- Foco narrativo: problema técnico da ficção que supõe questionar “quem narra?”, “como?”, “de que ângulo?”. Para muitos é sinônimo de ponto de vista, perspectiva, situação narrativa ou mesmo narrador. O termo ficou conhecido a partir do livro de Cleanth Brooks e R. P. Warren, Understanding Fiction, de 1943, onde aparece, em inglês como focus of narration.
Fonte bibliográfica: CHIAPPINI, Ligia. O foco narrativo. 10. ed. São Paulo: Ática, Digital source. Disponível em: https://tinyurl.com/y5vcupmk. Acesso em: 20 nov. 2019.
- Polifonia: o crítico literário russo Mikhail Bakhtin defendia que Dostoievski fora o inventor do romance polifônico. Este conceito diz respeito ao seguinte: “Nos romances de Dostoievski tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência” (BAKHTIN, 1981, p. 223 apud STALUZZA, 2011, p. 66). Isso pressupõe dizer que no universo literário do romance polifônico várias vozes falam simultaneamente.
Fonte bibliográfica: STALUZZA, Grenissá. Análise do discurso literário: das vozes de Homero em Joyce. Curitiba: Appris, 2012.
- Narrador onisciente: “O primeiro foco narrativo a considerar é o do escritor/narrador onisciente: diminuída a distância entre o autor e o narrador, de modo a estabelecer-se a fusão entre ambos, o ponto de vista onisciente é aquele em que o autor/narrador, qual um deus, tudo conhece da história e tudo pode esquadrinhar, inclusive a vida mental das personagens” (MOISÉS, 2004, p. 365).
Fonte bibliográfica: MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
Análise de outro trecho da obra
Para ilustrar novamente a complexidade narrativa e a polifonia no romance de José Saramago, e para tornar mais clara a questão, analisei mais um trecho, para além daquele que caiu na questão.
[NARRADOR DO ESCRITOR] A cidade murmura as orações, o sol apontou e ilumina as açoteias, não tarda que nos pátios apareçam os moradores. A almádena está em plena luz. O almuadem é cego.
[NARRADOR DE SARAMAGO] Não o tem descrito assim o historiador no seu livro. Apenas que o muezim subiu ao minarete e dali convocou os fiéis à oração na mesquita, sem rigores de ocasião, se era manhã ou meio-dia, ou se estava a pôr-se o sol, porque certamente em sua opinião, o miúdo pormenor não interessaria à história, somente que ficasse o leitor sabendo que o autor conhecia das coisas daquele tempo o suficiente para fazer delas responsável menção. (SARAMAGO, 2013, p. 19, grifos meus).
Com esse trecho, o choque é claro: em um momento, há o romance histórico do escritor historiador; em seguida, há a intrusão do narrador de Saramago, o que é identificável por meio das passagens grifadas.