Você sabia que agosto é o mês de conscientização sobre o combate à violência contra a mulher no Brasil? A iniciativa, chamada de Agosto Lilás, nasceu junto à Lei Maria da Penha, a principal de proteção às mulheres no País. Em 2022, ambas comemoram 16 anos com o tema “Um instrumento de luta por uma vida livre de violência”, lançado pela Câmara dos Deputados e o Senado.
Iniciativas como a do Agosto Lilás são criadas em busca de mudar os dados alarmantes sobre violência contra a mulher no território brasileiro: em 2021, uma mulher foi morta a cada 7 horas, e a cada 10 minutos uma mulher ou menina foi estuprada no Brasil, de acordo com o Fórum de Segurança Pública.
Um dos casos de violência contra a mulher que mais teve repercussão em 2022 foi o da paciente estuprada pelo médico Giovanni Quintella Bezerra, durante uma cesariana, no Rio de Janeiro. Baseada no caso, a professora Ale Lopes, de Sociologia e História, deu uma aula sobre violência contra mulheres e o Portal do Estratégia Vestibulares acompanhou para trazer a você tudo sobre o tema. Confira:
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O patriarcado e as desigualdades de gênero
O termo “patriarcado” se refere a um sistema de sociedade em que os homens possuem poder predominante em todas as áreas: política, moral, de propriedade e etc. Ou seja, trata-se de um modelo social com desigualdades de gênero entre homens e mulheres.
Achou o conceito familiar? Pois bem, esse é o modelo social no qual estamos inseridos. E, de acordo com a professora Ale Lopes, ele tem origem nas sociedades primitivas, nas quais as mulheres não conseguiam desempenhar, na mesma proporção, as funções que os homens empregavam. Isso porque, o tempo feminino era dividido entre as tarefas do dia a dia, a gestação e o cuidado com a prole.
“Essa situação [de gestação e cuidado com os filhos] nos privou de colher, de correr, de caçar igual os homens. E no processo da evolução da humanidade, essa diferença biológica se transformou em uma diferença social, por isso ela foi naturalizada”, explica Ale.
Influência do patriarcado nos direitos das mulheres no Brasil
Ao se estabelecer como modelo social, o patriarcado, além de atribuir exclusivamente às mulheres deveres de ambos os gêneros — como o cuidado doméstico e dos filhos, por exemplo —, cerceou diversos direitos das mulheres. Veja alguns exemplos da sociedade brasileira:
Educação formal
As primeiras escolas brasileiras foram criadas pelo grupo cristão português dos Jesuítas, durante o período colonial, e eram destinadas exclusivamente a meninos da elite social.
Foi apenas três séculos depois, em 1827, após a Independência do Brasil, que as meninas foram autorizadas a frequentar o ambiente escolar. Mas não se engane: as escolas eram divididas por gêneros, e apenas mulheres podiam lecionar para meninas.
E quem lecionava já que as mulheres não podiam, até então, estudar? Poucas professoras não diplomadas. Além disso, o currículo escolar tinha foco em preparar as alunas para os cuidados com o lar, com uma carga de disciplinas como Matemática, por exemplo, bem reduzida em relação a lecionada para os meninos.
Direito ao voto e à participação na política
Desde o século XIX vários movimentos feministas reivindicam o direito ao voto e à participação política para as mulheres. Nomes de destaque desse período são a professora Maria Lacerda de Moura e a bióloga Bertha Lutz, que fundaram a Liga para a Emancipação Internacional da Mulher – grupo que lutava pela igualdade política das mulheres.
Mais uma das demonstrações de uma sociedade patriarcal é o fato de que o nome do então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, é mais associado à conquista política das mulheres do que o de qualquer outra feminista. Foi no governo de Vargas, em 1932, que o Decreto 21.076 instituiu o direito ao voto para as mulheres no Código Eleitoral. Em 1934, o direito passou a integrar a nova Constituição Federal.
Espaço nos esportes
Você já se perguntou por que, em um lugar como o Brasil, o futebol feminino tem muito menos visibilidade que o masculino? Ou ainda, por que a jogadora Marta, eleita seis vezes a melhor do mundo pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), recebe muito menos reconhecimento do que um jogador receberia?
Em 1941, ainda sob sua ditadura, Getúlio Vargas baixou o Decreto 3.199 que proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem “adequados a sua natureza”. Por isso, o futebol, esporte mais popular do País atualmente, passou a ser proibido para mulheres e continuou na ilegalidade por 38 anos, até 1979.
Tese da legítima defesa da honra
A tese tem sua origem ainda na época colonial, quando a legislação criminal vigente no Brasil era o português Livro das Ordenações Filipinas. Nele, estava previsto que o marido tinha o direito de assassinar sua esposa, se a flagrasse em adultério. O que justificaria seu crime como manutenção de sua “honra”.
O primeiro código criminal brasileiro, de 1830, retirou da legislação essa previsão. Entretanto, em 1890, um novo código deixou de considerar crime quando se tratasse de homicídio cometido “sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência”. Ou seja, a Lei ainda dava aos maridos as mesmas justificativas da tese da legítima defesa da honra. Apenas em 1940 essa justificativa foi excluída na nova legislação.
Mesmo assim, a tese da legítima defesa da honra voltou a se popularizar no Brasil em 1979, quando o empresário Doca Street assassinou sua namorada Ângela Diniz. Desde então, o argumento passou a ser usado em casos semelhantes, e foi apenas em 2021 que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a tese era proibida em julgamentos por feminicídio.
Em julho de 2022, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o projeto de lei (PL) da senadora Zenaide Maia (Pros-RN) que “Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para, respectivamente, excluir os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher e o feminicídio das circunstâncias atenuantes e redutoras de pena relacionadas à violenta emoção e à defesa de relevante valor moral ou social; e para vedar o uso da tese da legítima defesa da honra como argumento para absolvição, pelo tribunal do júri, de acusado de feminicídio”.
Dados sobre violência contra a mulher no Brasil
Depois de conhecer um pouco mais sobre o conceito de patriarcado e as desigualdades de gênero no Brasil, fica fácil entender o porquê a violência contra mulher é um assunto tão comum no nosso dia a dia, aparecendo, inclusive no tema de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2015 “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, e em tantos outros vestibulares.
De acordo com o Fórum de Segurança Pública, em 2021, ocorreram um total de 1.319 feminicídios no Brasil. Isso significa que, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas.
O que é feminicídio?
É o termo usado para se referir a assassinatos de mulheres nos quais o gênero é o fator principal para vitimá-la.
Já os dados apresentados pelo Fórum sobre estupros e estupros de vulnerável em 2021, são ainda mais expressivos: foram registrados 56.098 boletins de ocorrência de estupros, incluindo vulneráveis, apenas do gênero feminino. Isso significa que, no ano passado, uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos, considerando apenas os casos que chegaram até as autoridades policiais.
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O que é estupro de vulnerável?
É o crime de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou com pessoas que por enfermidade ou doença mental não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou aquela que, mesmo por causa transitória, não possa oferecer resistência. A pena de reclusão vai de 8 a 15 anos.
Quem pratica violência contra a mulher?
Ainda de acordo com os dados do Fórum de Segurança Pública, desta vez divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, nos casos de morte violenta intencional de mulheres, o principal autor é desconhecido, com taxa de 82,7% dos casos.
Em contrapartida, nos feminicídios, em 81,7% dos casos o autor é o companheiro ou ex-companheiro da vítima, seguido de parente, com taxa de 14,4%. “No senso comum, os homens protegem as mulheres; nos dados, são os homens que assassinam as mulheres, majoritariamente”, comenta Ale Lopes.
Convenção do Belém do Pará
Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994, a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher”, também conhecida como “Convenção do Belém do Pará”, é o primeiro tratado internacional legalmente vinculante que criminaliza todas as formas de violência contra a mulher, em especial a violência sexual, servindo como um marco histórico internacional.
Por fazer parte da Convenção, o Brasil se comprometeu a desenvolver legislações referentes ao tema. E isso ficou oficializado pelo Decreto nº 1.973, de 1996, no qual o então presidente Fernando Henrique Cardoso determinou que a Convenção deveria ser “executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém”.
Leis que punem violência contra a mulher no Brasil
Apesar da Convenção do Belém do Pará, o Brasil aprovou sua primeira legislação voltada ao combate a violência contra a mulher há apenas 16 anos, em agosto de 2006. A Lei Maria da Penha recebeu o nome de uma vítima de violência doméstica que, após diversas agressões e tentativas de feminicídio por parte de seu marido, acabou paraplégica.
As demais leis foram sendo sancionadas ao longo dos anos e desde 2015 o Brasil conta com seis mecanismos de defesa às mulheres. Conheça:
- Lei Maria da Penha (11.340/2006): cria mecanismos para coibir a violência contra a mulher e estabelecer medidas de assistência e proteção;
- Lei Carolina Dieckmann (12.737/2012): tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para manutenção de dados particulares;
- Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013): oferece garantias as vítimas de violência sexual, como atendimento imediato pelo Sistema Único de Saúde (SUS), amparo médico, psicológico e social, exames preventivos;
- Lei Joanna Maranhão (12.650/2015): alterou os prazos de prescrição de crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes. A prescrição passou a contar após a vítima completar 18 anos;
- Lei do Feminicídio (13.104/2015): prevê o feminicídio como qualificação do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
“São Leis muito recentes, que mostram que o Brasil está engatinhando ainda no combate da violência contra a mulher. Essa legislação toda esbarra na questão da cultura”, comenta a professora Ale.
Tipos de violência contra a mulher reconhecidas pela legislação brasileira
Na Lei Maria da Penha estão tipificadas cinco formas diferentes de violência contra a mulher. Veja cada uma:
- Violência física: entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher;
- Violência psicológica: qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões;
- Violência sexual: trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
- Violência patrimonial: condutas que configurem retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
- Violência moral: conduta de calúnia, difamação ou injúria.
Como denunciar violência contra a mulher?
O governo federal oferece um serviço de assistência a mulheres em situação de violência. Para contatar a Central de Atendimento à Mulher basta discar 180. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, bem como reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento.
O serviço também fornece informações sobre os direitos da mulher, como os locais de atendimento mais próximos e apropriados para cada caso: Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.
Como cai no vestibular?
Para lidar com a violência contra a mulher nas provas dos vestibulares, a professora Ale ressalta a necessidade de propor soluções que atinjam a raiz dos problemas de desigualdade de gênero: “Quando pensamos em uma proposta de intervenção lá na redação do Enem, eu posso dizer, então, que existe um elemento cultural que permanece na história da humanidade, apesar das mudanças dos sistemas políticos? Sim, posso! Se esse é um elemento fundamental da violência contra as mulheres, que impede as mulheres de viver uma vida sem violência”.
Para pensar em soluções profundas, ainda segundo Ale, é necessário abandonar ideias populares: “Não dá para você levar para a sua prova esse senso comum de que a mulher é mais frágil do que o homem, de que a mulher precisa do homem para protegê-la, de que há uma diferença de inferioridade. Diferença é claro que há, desigualdade, não”.
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