Fuvest 2020 – “O papel da ciência no mundo contemporâneo”

Fuvest 2020 – “O papel da ciência no mundo contemporâneo”

Olá, pessoal. Tudo joia? Escrevo este artigo para comentar o tema da Redação da prova da 2ª Fase da FUVEST 2020. A temática da FUVEST este ano foi o papel da ciência no mundo contemporâneo. Primeiramente, vamos elencar os textos propostos e, em seguida, comentar o tema em questão.

TEXTO 1

TEXTO 2

Somente numa sociedade onde exista um clima cultural, em que o impulso à curiosidade e o amor à descoberta sejam compreendidos e cultivados, pode a ciência florescer. Somente quando a ciência se torna profundamente enraizada como um elemento cultural da sociedade é que pode ser mantida e desenvolvida uma tecnologia progressista e inovadora, tornando-se, então, possível uma associação íntima e vital entre ciência e tecnologia. Essa associação é uma característica da nossa época e certamente essencial para a manutenção de uma civilização com os níveis presentes de população e qualidade de vida.

Oscar Sala, O papel da ciência na sociedade. 1974. Disponível em http://www.revistas.usp.br/revhistoria. Adaptado.

TEXTO 3

Quanta do latim
Plural de quantum
Quando quase não há
Quantidade que se medir
Qualidade que se expressar
Fragmento infinitésimo
Quase que apenas mental
Quantum granulado no mel
Quantum ondulado no sal
Mel de urânio, sal de rádio
Qualquer coisa quase idea

Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos
Canto de louvor
De amor ao vento
Vento arte do ar
Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar
Vento de calor
De pensamento em chamas
Inspiração
Arte de criar o sabe

Arte, descoberta, invenção
Teoria em grego quer dizer
O ser em contemplação
Sei que a arte é irmã da ciência
Ambas filhas de um Deus fugaz
Que faz num momento
E no mesmo momento desfaz
Esse vago Deus por trás do mundo
Por detrás do detrás
Cântico dos cânticos
Quântico dos quânticos

Gilberto Gil, Quanta. 1997

TEXTO 4

Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara.

Carl Sagan,1996.

TEXTO 5

Algo muito estranho está acontecendo no mundo atual. Vivemos melhor que qual quer outra geração anterior. Pessoas são saudáveis graças às ciências da saúde. Moram em residências robustas, produto da engenharia. Usam eletricidade, domada pelo homem devido ao seu conhecimento de química e física. Paradoxalmente, essas mesmas pessoas ligam seus computadores, tablets e celulares para adquirir e disseminar informações que rejeitam a mesma ciência que é tão presente em suas vidas. Vivemos num mundo em que pessoas usam a ciência para negar a ciência.

Alicia Kowaltowski, Usando a ciência para negar a ciência. 2019. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/. Adaptado.

A proposta

Considerando as ideias apresentadas nos textos e também outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: o papel da ciência no mundo contemporâneo.

Instruções:

  • A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
  • Escreva, no mínimo,20 linhas, com letra legível e não ultrapasse o espaço de 30 linhas da folha de redação.
  • Dê um título a sua redação.

            Nesse ano a FUVEST, mantendo seu estilo, resolveu entrar na polêmica que ainda movimenta opiniões em torno da importância da ciência. Foram comuns, durante o ano, discussões em relação aos terraplanistas ou àqueles que negam a eficácia das vacinas. Justamente dois episódios que colocam em xeque a ciência no seu âmago. Afinal, a ciência moderna se inicia com o questionamento  do lugar que terra ocupa no Cosmos e a vacina sempre representou o que há de mais palpável em relação a importância da ciência para o Homem.

            O estilo, você já conhece, apresentar o problema de forma ampla.  O aluno deveria produzir um texto dissertativo sobre o tema explícito: o papel da ciência no mundo contemporâneo.  Como apoio, a Banca ofereceu uma coletânea com 5 textos, que, se bem refletidos, permitiria ao candidato elaborar um percurso dissertativo bastante interessante.  Vamos a eles.

            O texto 1, na verdade uma charge, tematizava o perigo que a ciência representa. Uma das cobras que se apresenta como inventora da roda, manifesta arrependimento, quando o artefato, descendo um plano inclinado, ameaça atropelá-la.

            O texto 2 defende a tese de que “a manutenção de uma civilização com os níveis presentes” depende do papel social que a ciência vier a ocupar. O texto 3 pode ser lido como ampliação poética dessa ideia. Trata-se de uma música composta por Gilberto Gil, na qual ele propõe um tipo de aproximação entre ciência e religião que aboliria a diferença entre essas esferas.  No refrão ““Cântico dos cânticos/ Quântico dos quânticos”, o eu lírico faz referência ao livro da bíblia que tem esse nome, “Cântico dos cânticos”, e à expressão tirada das mais recentes teorias da física, a teoria quântica.

            Os dois últimos fragmentos expõem o perigo que ronda essa relação entre ciência e sociedade. O primeiro expressa o paradoxo em que vivemos, dependemos da ciência de uma forma nunca imaginada e ao mesmo tempo desconhecemos o que é a ciência. Isso seria uma “receita para o desastre”, segundo o texto 4. O último texto trata dessa contradição em uma medida mais profunda, considera aqueles que podem ser denominados “negacionistas” (negam evidências). Tais pessoas valem-se da ciência e da tecnologia para, justamente, “disseminar informações que rejeitam a mesma ciência”.

Percurso da coletânea

Para os desesperados de plantão, a própria coletânea apresentava uma possibilidade de desenvolvimento. O texto 2 apresentava a tese: a ciência é importante para manter os níveis atuais de civilização.

O texto 1 deixava claro que a ciência por si, pode ser benéfica ou prejudicial a quem a criou. Há riscos. Os outros textos nomeavam esses riscos: o negacionismo, o desconhecimento do “espírito da ciência” e o hiato social entre ciência e sociedade.

Como você pode observar, havia uma tese e três riscos que poderiam ser desenvolvidos em 3 parágrafos. Bastaria que o candidato preenchesse essas ideias gerais com repertório próprio, progressão, coesão etc.

Outros percursos

Qualquer outro percurso argumentativo dependeria das teses que poderiam ser formuladas. Lembre-se, para elaborar uma tese, retome o tema e acrescente o que você deseja afirmar: “o papel da ciência no mundo contemporâneo é…”

A partir daí, podemos pensar em 2 possibilidades: (1) é importante ou (2) não é importante. Há um posicionamento intermediário: o papel da ciência é acessório.  Fazendo combinações, podemos chegar a variações:

  • A ciência tem papel fundamental e determinante para o futuro da sociedade.
  • A ciência tem papel importante para transformar o mundo em algo melhor.
  • A ciência tem papel importante, mas há riscos.
  • A ciência tem papel acessório, pois…
  • A ciência como constituída hoje tem um papel subordinado ao sistema econômico….
  • A ciência tem assumido um papel que representa um risco para a humanidade…
  • Diante de uma opinião pública hostil à ciência, o papel da ciência é o de se justificar perante a sociedade.

Pressupostos

De certa forma, o próprio candidato deveria demonstrar que tem conhecimentos sobre a ciência. Aliás, se alguém pretende fazer parte do circuito acadêmico regido pelos pressupostos do conhecimento moderno, deve ser capaz de saber do que se está falando.

A ciência moderna como configurada a partir do Renascimento é uma forma de conhecer o mundo baseada num método rigoroso que parte do pressuposto da dúvida.

Parte-se da premissa de que qualquer afirmação que se proponha a ter validade de verdade pode ser posta em dúvida até prova em contrário. O cientista quando apresenta uma resposta deve provar o que diz através de experimentos, cálculos e diálogo com a comunidade acadêmica.  Isso se refere à ciência pura.

A ciência gerou a tecnologia. Trata-se de conhecimento aplicado que permitiu ao homem desenvolver máquinas e ferramentas capazes de solucionar problemas práticos.

Tanto a ciência quanto a tecnologia devem ser vistas como meios, como ferramentas e não como fins em si.  São modos de se conseguir uma vida mais confortável. O que define o papel de alguma ferramenta é o seu uso. Uma faca utilizada para cortar alimentos não representa qualquer ameaça, empunhada na mão de um terrorista, o utensílio assume outro significado.

Repertório possível

A seguir enumero alguns percursos argumentativos dentre vários outros que poderiam ser usados. Observe que eles poderiam ser utilizados para apoiar diferentes teses.

Crítica à ciência

– A ciência considerada como um ídolo sem qualquer crítica produz desastres, basta considerar as teorias deterministas, evolucionistas e racistas do final do século XIX que serviram de base para políticas de eugenia e extermínio.

– As descobertas científicas estão submetidas a interesses econômicos, nunca se destruiu o meio ambiente tão velozmente quanto no século XX, época em que a tecnologia se tornou a mediadora entre o homem e a natureza. Atualmente, o desenvolvimento da inteligência artificial, se não for bem administrado, pode provocar a exclusão de boa parte da humanidade que não se beneficiará dos avanços da ciência.

– Os pensadores da Escola de Frankfurt formularam a expressão “razão instrumental” para nomear o processo no qual o homem cria a ciência para dominar a natureza e acaba por ser dominado por um tipo de conhecimento técnico que está a serviço do próprio sistema capitalista.

– Michael Foucault criou o termo biopolítica para destacar que, a partir de desenvolvimento da biologia, houve um processo de disciplinarização e vigilância que torna as pessoas dóceis aos poderes de manipulação.  Em nome da ciência médica, pode-se classificar pessoas, alterar seus hábitos, proibir procedimentos (como fumar), constranger etc.

– Duas histórias bem conhecidas, dentre outras, expressam o risco da ciência: “o médico e o monstro” e “o aprendiz de feiticeiro”. No primeiro caso, a ciência leva à criação de uma aberração insustentável; no segundo, o aprendiz não consegue mais controlar as forças que ele mesmo despertou na natureza.

– O filósofo brasileiro Paulo Arantes definiu barbárie de uma maneira nova.  O termo não se refere a procedimentos não-civilizacionais, mas à incapacidade de o homem lidar com o poder da tecnologia e da ciência.

– Zigmunt Bauman, sociólogo, chamou a atenção em seu livro “Mundo para Consumo” para o fato de que os aparatos informacionais produziram uma tal quantidade de informação que corremos o risco de que sistemas de inteligência artificial ocupem o lugar decisório de seres humanos, algo que parcialmente já ocorre, quando se considera o papel dos algoritmos na nossa vida.

– Historicamente, é possível destacar como a ciência fez grandes progressos a partir de cobaias humanas.

Elogio à ciência

– A ciência ocupou o lugar do dogmatismo religioso, mais nefasto, pois a religião não permite a dúvida o que leva frequentemente a massacres.

– Historicamente, a ciência foi capaz de aumentar a expectativa de vida, de encontrar alívios para os sofrimentos humanos, de permitir uma vida mais confortável etc.

– A ciência e a tecnologia permitiram uma certa autonomia do indivíduo frente à tradição.

Riscos para a sociedade em relação à forma como tratamos a ciência.

– O negacionismo pode levar os homens a obscurantismo, a desenvolver ideias que redundam em preconceito e na tese de que, se tudo é válido, então a realidade deve ser regulada pela lei do mais forte.

– Se os pressupostos da ciência não forem assimilados pelas pessoas comuns – o fundamento da dúvida, o método científico e o rigor formal – elas não darão valor à ciência.

– Vivemos em uma sociedade extremamente complexa, na qual a tecnologia aliada interesses econômicos têm o potencial de provocar grandes estragos, mas, ao mesmo tempo, somente a ciência pode dar respostas aos grandes desafios sociais, se ela for aceita e compreendida pelas pessoas.

– Se as pessoas não perceberem o papel social da ciência e se não for usada para beneficiar a grande maioria, ela se tronará simplesmente um instrumento poderoso na mão de pessoas ou de instituições que usarão a tecnologia não para o bem comum, mas para vantagens particulares.

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