Faleceu hoje, aos 77 anos de idade, uma das maiores vozes brasileiras, Gal Costa. Maria da Graça Costa Penna Burgos nasceu em 26 de setembro de 1945 em Salvador e completou 57 anos de carreira, cantando sucessos como “Baby”, “Meu Nome é Gal”, “Aquarela do Brasil” e “Vapor Barato”.
Sua projeção veio com a tropicália, movimento cultural da qual fez parte nos anos 60 e 70, ao lado de nomes como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Ao longo da carreira, cantou sucessos e composições de Cazuza, Roberto Carlos, Jards Macalé, Tim Maia e Marília Mendonça.
Com mais de 40 álbuns de estúdio, Gal estava em turnê com o show “As várias pontas de uma estrela”, mas interrompeu a agenda no último mês, devido a retirada de um nódulo na fossa nasal direita. Em seu último show (no dia 17 de setembro), no Coala Festival, em São Paulo, cantou com Tim Bernardes e Rubel, cantores expoentes da música brasileira.
Para homenagear Gal Costa e seu legado, o Estratégia Vestibulares listou músicas cantadas por ela que podem ser usadas como repertório sociocultural no Enem e vestibulares brasileiros, seja por suas histórias, contextos e intenções.
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Divino Maravilhoso
Escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Divino Maravilhoso” traz força na letra e na interpretação de Gal, que cantou-a de forma agressiva, usando toda a potência da sua voz e que a canção exigia.
Na primeira apresentação da música, em novembro de 1968, a cantora surpreendeu o público ao romper com sua imagem até então comportada e surgir de black power, com colares enormes e mensagem clara contra a repressão da ditadura militar instaurada no país:
“Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte”
Baby
Também lançada em 1968, a canção “Baby” é um dos maiores clássicos de Gal Costa, e faz parte do álbum “Tropicalia ou panis et circensis”. A música aborda a modernidade e o consumismo do jovem urbano da época, segundo o artigo “Leia na Minha Camisa”, de Márcia Cristina Fraguas.
“Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim”
Aqui são elencados objetos de consumo dos jovens naquele momento: piscina como espaço de convívio da elite, margarina dos comerciais, Carolina, remetendo a um samba de Chico Buarque, e gasolina, na expansão do mercado automobilístico pelo país.
“Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete
Andar com a gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto”
Já na estrofe acima, os irmãos Veloso — Bethânia e Caetano, compositores da música — abordam o consumo em espaço público, incluindo até mesmo Roberto Carlos, ídolo da jovem guarda, movimento crescente nas cidades. Destaca-se também o uso de termos em inglês, Baby, por exemplo, acompanhado de pedidos para aprender a língua e “o que eu não sei mais”, verso que flerta com a modernidade pujante e acelerada.
Juventude Transviada
Escrita por Luiz Melodia, “Juventude Transviada” tem versos marcantes, como “lava roupa todo dia, que agonia”, e um aviso: “uma mulher não deve vacilar”. A música remete aos jovens, principalmente mulheres, que, naquele momento — a música foi lançada em 1975 — não enxergavam um futuro para si e para o país, na visão do autor.
A versão mais recente da música está presente no último álbum de Gal, com participação de vários cantores, dentre eles, Seu Jorge, que a acompanha na canção.
Dê um Rolê
A versão original pertence aos Novos Baianos, mas Gal regravou “Dê um Rolê” em 1971, no álbum “Fa-tal: Gal a todo vapor”. A música se inicia com “Não se assuste pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa”, refletindo as angústias sociais vividas na juventude da época.
“Enquanto eles se batem
Dê um rolê e você vai ouvir
Apenas quem já dizia
Eu não tenho nada
antes de você ser eu sou
Eu sou, eu sou, eu sou amor
Da cabeça aos pés”
A letra expõe a necessidade de espairecer a mente, sair por aí. Inclusive, o uso do termo “rolê”, é o mesmo de atualmente, o que abre margem para debates sobre preconceitos de classe e pertencimento aos espaços, sejam públicos ou privados, citando, por exemplo, a criminalização dos rolezinhos de anos atrás.
Aquarela do Brasil
A composição de Ary Barroso foi lançada em 1939, e o tempo não a apagou. Gal gravou sua versão em 1980 da música que é considerada a fundadora do samba-exaltação, em que a pátria e símbolos nacionais são cultuados em letras e ritmos.
A música pode aparecer nos vestibulares por ser marcante e icônica, remetendo a períodos de exaltação do país, ainda que haja críticas de que ela tenha envelhecido mal, ou passado por contestações ao longo do tempo.
Vapor Barato
“Sim
Eu estou tão cansado, mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio
Eu vou tomar aquele velho navio
Aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
Graças a Deus
E não me importa
E não me importa não”
A composição de Jards Macalé e Waly Salomão traz referências, metáforas e paralelos com a repressão da ditadura militar no país. “Vapor Barato” é resultado de uma juventude inquieta e de uma contracultura crescente que buscava responder aos ataques feitos à liberdade de imprensa e aos artistas naquele contexto.
O rumo do navio, citado na letra, remete ao pertencimento existencial, e não físico, dos artistas para com o Brasil, abordando também a questão do exílio, movimento comum à época. Soma-se isso a referências explícitas, como “casaco de general”.
A música ainda ganhou um novo contexto, ao ser inserida no final do filme “Terra Estrangeira”, de Walter Salles: ali, a presidência já era de Fernando Collor, e o confisco das cadernetas de poupança já era uma realidade. E tal ato fez com que muitos brasileiros deixassem o país, como nos exílios dos tempos ditatoriais.
Modinha para Gabriela
A letra de Dorival Caymmi foi feita em 1975 para a telenovela “Gabriela”, inspirada no romance de Jorge Amado, “Gabriela, Cravo e Canela”. A obra é considerada transgressora e a música acompanha o espírito de sua musa.
Passada nos anos 20, o livro traz Gabriela como uma jovem sedutora que arrebata o coração não só de Nacib, com quem se casa, mas com um número incontável de homens de Ilhéus, a ponto de colocar em xeque a lei local em que o adultério feminino culminava na morte da mulher.
“Eu nasci assim eu cresci assim
E sou mesmo assim
Vou ser sempre assim Gabriela
Sempre Gabriela
Eu sou sempre igual não desejo o mau
Amo o natural etc e tal
Gabriela sempre Gabriela”.
A música representa uma obra marcante que questiona a sociedade patriarcal e autoritária da época, trazendo renovações culturais, políticas e econômicas, presentes no romance de várias maneiras.
Canta Brasil
A letra de Alcir Pires Vermelho e David Nasser foi escrita em 1941, ainda nos embalos de “Aquarela do Brasil”. Em sua descrição, consta “cena brasileira” como ritmo, e não samba, tal qual Aquarela.
O sucesso foi imediato, abrindo duas versões para a reação de Ary Barroso: uma diz que ele considerou a canção formidável, já outra, que além de não gostar, justamente pelas características próximas à Aquarela do Brasil, ainda rompeu sua longa amizade com Alcir.
“A beleza deste céu
Onde o azul é mais azul
Na aquarela do Brasil
Eu cantei de norte a sul
Mas agora o teu cantar
Meu Brasil quero escutar
Nas preces da sertaneja
Nas ondas do rio-mar”
Na voz de Gal Costa, “Canta, Brasil!” foi revigorada, caindo novamente no gosto e paixão dos brasileiros na década de 80. A exaltação nacional é clara: “No céu, no mar, na terra! Canta, Brasil!”.
Brasil
Não só de exaltação ao país viveu Gal: ao regravar “Brasil”, de Cazuza, a intérprete revive tempos pós-ditadura, da música que foi um dos grandes manifestos políticos do final dos anos 80. A redemocratização e escolhas de um futuro marcam o período, e a canção reflete todo o contexto:
“Não me convidaram
Pra esta festa pobre
Que os homens armaram
Pra me convencer
A pagar sem ver
Toda essa droga
Que já vem malhada
Antes de eu nascer
[…]Brasil!
Mostra tua cara
Quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil!
Qual é o teu negócio?
O nome do teu sócio?
Confia em mim”
A “festa pobre”. termo cunhado na música, refere-se à denominação “festa da democracia”, que resume a criação da Constituição Federal de 1988. A crítica é justamente aos políticos e à mídia, já que seus autores consideravam que, mesmo em meio às comemorações pelo fim da ditadura, a Carta Magna ainda não representava o futuro político desejado por setores da sociedade brasileira. E “Brasil” expõe esse mix de sentimentos de forma rasgada e objetiva.
Mamãe, Coragem
A música foi criada por Caetano Veloso e Torquato Neto, e tem referência clara a uma mãe preocupada com o filho, que se mudou para a cidade grande. Há uma leitura de que a canção é um diálogo entre Torquato e sua mãe, Salomé.
“Mamãe, mamãe, não chore
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
Veja as contas do mercado
Pague as prestações
Ser mãe
É desdobrar fibra por fibra
Os corações dos filhos
Seja feliz
Seja feliz’
A música retrata o sentimento materno de despedida e de vazio que um filho deixa em busca de novos rumos e oportunidades. Há ainda a inspiração no texto teatral “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertolt Brecht, escrito no início da Segunda Guerra Mundial.
London London
A solidão é descrita diversas vezes em “London London”, canção escrita por Caetano Veloso enquanto viveu exilado na capital britânica. A sensação de ser um exilado, fora de seu país natal, por divergências políticas, ficam marcadas na letra:
“I’m wandering round and round, nowhere to go
I’m lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
[…]Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them”
Tradução:
“Estou vagando, dando umas voltas, sem direção
Estou solitário em Londres, Londres é amável assim
Cruzo as ruas sem medos
Todo mundo deixa o caminho livre”
[…]Oh Domingo, segunda, Outono, passam por mim
E as pessoas passam apressadas com tanta paz
Um grupo aborda um policial
Ele parece tão satisfeito em poder atendê-los”
A descrição feita por Caetano da abordagem do policial britânico é um claro contraste ao que acontecia no Brasil, em que os militares não atendiam às necessidades do povo, pelo contrário, segundo suas declarações pessoais sobre o período.
Saudosismo
Outra das músicas inesquecíveis de seu primeiro álbum de estúdio, “Saudosismo” também foi escrita por Caetano Veloso e retrata a nostalgia dos tempos antes da ditadura militar, onde viviam “tempos de paz” na cidade de Salvador. Apesar da letra inofensiva, a canção foi censurada e pode ser lançada apenas um ano após a sua gravação.
“Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor
E outras mumunhas mais
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar tentamos inventar
Tentamos inventar tentamos”
Dom de Iludir
Muito provavelmente, você já ouviu o seguinte trecho “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, essa é uma das músicas mais famosas interpretadas pela voz magnética de Gal Costa.
Escrita por Caetano Veloso em 1976, a música é uma resposta em forma de paródia da canção “Pra que mentir?” de Noel Rosa e Vadico, que questiona o dom da mulher de iludir e mentir. Veja o trecho dessa canção:
“Esse dom
De saber iludir?
Pra quê?! Pra que mentir?
Se não há necessidade
De me trair?
Pra que mentir?
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir?”
Em “Dom de Iludir”, o eu-lírico feminino escrito por Caetano responde Noel logo nos primeiros versos:
“Não me venha falar na malícia
De toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é‚
Não me olhe como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca
E não cale na boca
Notícia ruim”
A letra ainda afirma que a forma do homem iludir é impor a sua verdade, ser o dono da verdade, o que refletia a sociedade patriarcal, em que o homem é o dono da verdade e a sua voz sempre prevalece.
Tigresa
Lançada originalmente no álbum “Bichos” (1977) de Caetano Veloso, a música ficou eternizada na voz de Gal no disco “Caras e Bocas”, também lançado em 1977.
A letra da canção reflete como Caetano enxergava e digeria o que estava acontecendo no mundo naquela década. Os versos descrevem uma mulher, que foi inspirada pela atriz Zezé Motta e a outras mulheres que o autor encontrou nas noites de festa da Dancing Days.
Essa mulher se interessava por política, que era livre, que aproveitava a noite e que era cheia de sentimentos pelas experiências que viveu, seja na carreira ou no amor. A letra retrata movimentos sociais que estavam surgindo, como o feminismo e movimento negro, ou que estavam no seu auge, assim como a contracultura.
‘Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom
Do seu corpo contra o meu
Me falou que o mau é bom e o bem cruel
Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu
Ela me conta, sem certeza, tudo o que viveu
Que gostava de política em 1966
E hoje dança no Frenetic Dancing Days
Ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz, com outros, foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor”
Lágrimas Negras
Penúltima música do álbum “Cantar” (1971), “Lágrimas Negras” é uma canção escrita por Jorge Mautner e Nelson Jacobina. O contexto da canção é o ano de 1973, no fim do milagre econômico brasileiro e no começo da crise do petróleo, um dos grandes tropeços do capitalismo.
A canção traz uma melodia triste, mas que ao mesmo tempo envolve aqueles que testemunharam aquele período da história, ainda mais interpretada pela potência sonora que foi Gal Costa. Inclusive, com jogos de palavras, os autores comparam as lágrimas com as grandes causadoras da crise financeira que abalou o mundo.
“Na frente do cortejo o meu beijo
Muito forte como aço, meu abraço
São poços de petróleo a luz negra dos seus olhos
Lágrimas negras caem, saem
Dói
Por entre flores e estrelas
Você usa uma delas como brinco
Pendurada na orelha
É o astronauta da saudade
Com a boca toda vermelha
Lágrimas negras caem, saem
Dói”
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